Doutora Marjorie

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Eu vou ficar calada a hora inteira. Vou te contar tudo. Tudo tudo. Mas vou ficar calada. Se a senhora ver meus pensamentos igual eu tô vendo os da senhora, a senhora me dá um sinal. Mas senão, eu vou ficar com a boca fechada e com a cabeça abaixada a hora todinha. É. Já reparei que a senhora não tá vendo.

Na verdade eu sei que a doutora consegue ler de alguma forma. Não é bem a cabeça. Não é o meu coração. Acho que é o meu corpo. É o meu corpo que a senhora tá lendo? É. A senhora não ouviu eu perguntar mas respondeu. Obrigada, doutora. A senhora já viu em mim que eu tô doidinha pra falar, mesmo com eu calada. E a senhora deixa que eu faço assim desse jeito. Isso é legal. Eu gosto da senhora.

Não sei se posso confiar na senhora, mas eu gosto da senhora. Posso confiar na senhora? A senhora disse que sim mas isso não quer dizer nada. A senhora vai ter que provar. É engraçado que quando eu mexo na cadeira a senhora sabe o que eu tô sentindo. E se eu falar mentira a senhora sabe também. Aprendeu isso na faculdade? Mas ler a mente é melhor, doutora. É mais fundo. A gente às vezes sabe coisa que nem a pessoa sabe. Se quiser eu te ensino. Se eu poder confiar na senhora, eu vou contar a minha história toda. E aí eu te ensino como que eu faço pra ler o pensamento das pessoas. Não ensinaram isso pra senhora na faculdade, né?

Primeiro, tem que estar com fome. Não é todo dia que eu consigo ler pensamento dos outros. Antes eu lia e não sabia porque que tinha dia que eu lia e tinha dia que eu não lia. Mas aí eu vi que era só nos dias que eu estou com fome. Mas não é essa fominha que a gente sente meio dia no dia que o almoço só vai sair uma hora não. É fome de ficar um dia todo sem comer. Fome mesmo. Hoje eu fiquei sem comer desde ontem. Não almocei ontem porque eu queria ler a cabeça da senhora hoje. Mas não é só sentir fome. Tem que esquecer que tá com fome. Tem que fingir que não tá com fome, que não tá ficando tonta. Fingir pra você mesmo, esquecer mesmo. Tem que ser forte pra aguentar sem desmaiar.

Daí tem uma hora que vem as falas das cabeças das pessoas. Nas primeiras vezes eu achava que eu tava era doida. Eu fiquei ouvindo a minha prima falando do menino que ela gostava. Eu nem sabia que ela gostava de um menino. Mas aí ela falava o nome dele o tempo todo na cabeça. Rodriguinho. Rodriguinho. Aí no outro dia eu falei pra ela por que que ela ficava só pensando no Rodriguinho. Ela ficou muito brava, me deu um tapa na cara, me chamou de mentirosa e enxerida, falou que ela não gostava de Rodriguinho nenhum e saiu correndo. Mas ao mesmo tempo ela pensava e eu escutava ela pensando. Meu Deus, como ela descobriu que eu gosto do Rodriguinho? Eu nunca contei pra ninguém! E ficava pensando em beijar ele na boca. Rodriguinho. Rodriguinho. E pensava mais um monte de coisa ao mesmo tempo. Ela pensava em gente morta, em gente pelada, em cena de novela, em mato, cachoeira e no Rodriguinho, tudo ao mesmo tempo. Eu achava que ela era doida. Ou então eu que era doida.

Mas depois teve outros dias que eu ouvi os pensamentos de outras pessoas e vi que todo mundo pensa tudo misturado. Aí, com medo de ficar doida eu perguntava as coisas pras pessoas, pra saber se eu tava ouvindo a cabeça delas mesmo ou se era coisa da minha cabeça. Todo mundo assusta quando eu pergunto. Aí se a pessoa tem vergonha, ela acha ruim comigo e mente dizendo o contrário do que eu perguntei. Aí eu fico sabendo que eu ouvi mesmo e não é doidice minha.

Se eu criar coragem, na semana que vem eu conto pra senhora isso tudo, se eu passar a confiar na senhora. Prometo que eu não vou ficar caladinha que nem hoje. A irmã Penha veio falar comigo hoje, ela é uma pessoa tão legal. Acho que é a irmã que eu mais gosto. Ela falou que quer me ver bem de novo, feliz. E eu vi na mente dela que ela quer muito que essa terapia dá certo. Terapia é isso que eu faço aqui com a senhora, né? Acho que é. A senhora acha assim também, né doutora Marjorie, que nem a irmã Penha. Aí pra dar certo eu tenho que contar as minhas coisas, né? Não adianta eu ficar quieta.

Eu não consigo contar tudo. Eu tenho vergonha. Eu tenho medo da senhora achar que eu sou doida e querer me colocar no hospício. Mas eu não sou doida. Eu só leio as cabeças das pessoas. Eu nem ligo de contar das coisas ruins que aconteceram comigo. Mas é que pra contar tudo, eu tenho que contar que eu sei ler os pensamentos. A senhora promete que não me acha doida se eu contar? Eu nem ligo de falar da morte da minha mãe. Foi ruim, mas eu fiquei em paz, porque eu sabia que ela tava feliz de morrer. Ela ia parar de sofrer. Ela me disse isso. Eu vi pelos olhos dela na hora.

Também não ligo de contar pra senhora do tio Tião. Era muito ruim quando ele ia pro meu quarto de noite pra me pegar. Mas eu entendia ele. Era ruindade dele? Era também. Mas no dia que eu li a cabeça dele da primeira vez eu comecei a entender porque ele fazia aquilo comigo. A cabeça dele era mais bagunçada que a das outras pessoas. Bem mais. Ele sofreu muito na vida e aí ficou assim mais doido que as outras pessoas. Não sabia ser bom, nem sabia ser ruim. Não sabia o que era ser bom e nem o que era ser ruim. Ele queria saber as coisas, mas não conseguia e aí ficava mal, ficava triste e aí a cabeça dele bagunçava mais ainda. Ele era um homem sozinho. Ninguém nunca gostou dele. Ele não era amado por ninguém. Eu era amada. Eu tinha minha mãe. Mas ele não. A mãe dele odiava ele. O pai dele sumiu quando ele era nenenzinho. O tio dele que pegava ele também, machucava ele muito. Comigo ele sentia um pouco de conforto. Mas nem ele sabia disso tudo direito.

Tem coisa que é assim, doutora. As pessoas pensam lá no fundo da cabeça. Mas elas não sabem que pensam aquilo. Elas escondem os pensamentos lá embaixo pra não pensar neles. É medo de doer. Às vezes é vergonha. Às vezes é porque não entendem. Tem coisa que é muito difícil da pessoa entender, aí ela esconde lá no fundo da cabeça pra não ficar sabendo. Tio Tião era assim. Ele sabia que não devia fazer aquilo comigo, mas pensava que tava me tratando bem, que não tava me machucando, pensava que me amava e que eu amava ele também. Eu tinha era medo. Mas eu entendia ele. Eu só contei dele pra minha mãe porque eu não aguentava mais ele me machucando. Eu não queria que meu avô matasse ele não. Mas eu gostei também porque aí eu fiquei livre dele.

Eu acho que não é todo mundo que lê as mentes se está com fome. A minha mãe não lia. Eu tentei contar umas coisas pra ela só no pensamento nos dias que ela estava com fome, mas ela não ouvia. Acho que é só eu que tenho isso. Acho que eu é que sou doida. A senhora vai achar que eu sou doida se eu te contar, doutora Marjorie? Eu acho bonito o nome da senhora. Marjorie. Eu não gosto do meu nome. Maria Josefa. Minha mãe botou o nome da mãe dela em mim, mas eu acho feio. Eu acho que a senhora é uma pessoa boa.

Eu acho que posso contar tudo pra senhora. As irmãs da Casa Lar são boas também, mas eu acho que só a senhora vai entender a minha história. Elas são boas, mas não vão entender. Vão só ficar com pena. A senhora não. A senhora sabe o que fazer pra me ajudar. Eu sei disso. Tá tudo aí na sua cabeça.

Eu vou embora agora então. Segunda que vem eu volto então aí eu conto tudo pra senhora. Desculpa eu ter ficado caladinha. Mas é que eu queria ler a mente da senhora e se a gente ficar conversando eu não consigo. Mas eu já vi que posso confiar na senhora, então eu conto tudo na outra vez.

Eu gosto muito da senhora, doutora Marjorie. Eu fico em paz quando tô perto da senhora.

O JuradoOnde histórias criam vida. Descubra agora