3- Cheiro de álcool

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Já eram quase cinco horas da tarde e nossos pais ainda estavam na sala colocando assuntos em dia. Só assim pra minha mãe sair um pouco de casa. Nós ficamos no quarto ouvindo o álbum novo do Panic! At The Disco (nossa banda favorita) e comendo salgadinhos de milho enquanto olhávamos a vizinhança da possível nova casa pelo google maps. Era um lugar muito bonito, perto de um lago e vários outros lugares impossíveis de se chegar à pé onde moramos.

- Olha, tem um cinema bem aqui! - nunca tínhamos ido a um cinema de verdade, já imaginávamos vários programas pro domingo - Qual filme deve estar em cartaz?

Eu a deixei falando sozinha por alguns instantes, estava ali e em outro lugar ao mesmo tempo. Aqueles olhos castanhos e os dentes de coelho me deixam assim, sem ter o que falar, eu apenas olhava para ela e dizia que sim com a cabeça, fingindo entender tudo. Vira e mexe ela olhava bem fundo nos meus olhos e balançava a mão, se certificando que eu ainda estivesse ali com ela.
Natalie realmente estava empolgada com tudo isso. Deixemos que ela curta esse momento.

- Oi? Terra chamando Anne. Eu perguntei se você quer mais, e aí?

- Mais? Ah, sim - o salgado, anta -, quero sim!

Nem estava com fome mas e daí?

- Toma aqui - colocou o prato no meu colo e sentou-se no chão ao meu lado-.

- Obrigada!

- Então, a gente vai passar na sua casa tá? Ouvi eles dizendo lá embaixo.

- Ah, claro. O carro da sua família é maior.

- Sim, o Érick vai também? Cabe todo mundo!

- Vai sim, não tem como ele ficar, a casa da minha tia fica distante daqui então...

- Acorde cedo no sábado, você é péssima nisso, não quero precisar te mandar sms.

- Tudo bem, Dona Natalie! Eu entendi, eu vou acordar cedo.

Sim, Érick é meu irmão mais novo, ele tem dez anos e é "aturável". Por alguma razão a Natalie ama ele, tipo, muito. Ela cresceu sendo filha única, acho que ela sente falta de um laço de irmandade. Espero que ela nunca tenha esse laço comigo!

- Anne, estou indo está bem?

- Okay, estou descendo, espere por mim!

- Ué, Anne... você... já vai?

- Vou, mas se precisar sabe o que fazer.

- Ah, fica comigo, a gente pode ver netflix ou sei lá... pedir burritos!

A mão na maçaneta mas aquela vontade de ficar... SER OU NÃO SER? EIS A QUESTÃO.

- Eu tenho que ajudar a mama a dobrar algumas roupas e sabe como é...

- Ah, okay. Tudo bem, entendo. Vai lá, mas fica online por favor.

- Ta bom - ela sorriu-. Estarei on a noite inteira se quiser. Até mais!

Fechei a porta e fui para casa.

20:12

Eu tinha terminado de ajudar minha mãe então fui para o sofá ver TV. Nada de interessante. Olhei para o celular para ver se a Nat tinha mandado alguma mensagem, mas nada.

20:15

Nada de mensagens, estava sozinha; eu, meu prato de macarrão e uma lata de Diezzer em frente a TV sufocada por comerciais que só reforçam o quanto você não pode ser fisicamente aceita pela sociedade.
Minha mãe deu um grito lá de dentro. Eu corri e acabei deixando o prato cair no chão, meu irmão tinha se cortado na janela velha da cozinha. Fui atrás de alguns curativos no banheiro e acabamos enrolando a mão dele numa camisa velha. Não somos uma família muito preparada.
Quando acabei de ajudar meu irmão a se vestir vi que meu telefone vibrava muito então fui ver o que estava acontecendo. Era a mãe da Natalie dizendo que elas estavam no hospital. Pensei nas várias possibilidades de uma pessoa morrer em casa e bateu o desespero.

- Mãe, a Nat está no hospital, eu não sei o que aconteceu mas eu preciso ir lá! - a lágrima teimava em cair

- Tudo bem, nós vamos com você!

Meu peito chegava pulsar forte, eu só pensava o pior, encostei a cabeça na janela e pedi aos anjos que ela estivesse bem. Sabe quando você ama tanto uma pessoa que acha que não iria suportar perdê-la e morreria junto? Eu nesse momento.

- Oi, o que aconteceu?!

- A Natalie foi tomar banho e não se sentiu bem, ela caiu e bateu a cabeça. Mas ela já foi atendida e agora está tudo bem.

- Ai que alívio! Fico feliz. Estava muito preocupada. Cadê ela?

- Está na sala de curativos.

- Foi grave? Tem muito sangue?

- Ah, não, não se preocupe - ela riu-. Pode ir.

Pus a cabeça na porta entre aberta e ela estava lá sentadinha na maca. Quando ela me viu ela fez uma dancinha com as mãos; tipo "eu só abri minha cabeça, nada demais, tudo suça".

- Sua cretina! Não faz isso comigo, vadia!

- Ah, claro, eu super programei passar mal no banheiro. Óbvio - ela riu.
Senta aqui.

- O que houve?

- Eu quis sentir o piso do banheiro, aquele brilho era lindo demais, tão geladinho...

- Garota, fala sério! Vou dar motivo pra abrir mais isso daí.

- Ah sei lá, fiquei meio tonta, acho que a pressão desceu e aí eu só lembro de ver muito sangue. Nada demais, estou viva não estou?

- Levou muitos pontos?

- Alguns, ainda bem que não precisou raspar meu cabelo. Minha cabeça não é muito bonita pra ter um lado dela careca. Que imagem horrível...

- Tudo minha culpa...

- Ai claro que não, deixa de ser besta. Nada a ver isso.

- Eu poderia ter ficado com você e talvez isso não tivesse acontecido...

- Está tudo bem, deita aqui.

Aquele cheiro de hospital me incomodava. Era uma cheiro de álcool misturado com ferrugem mas, de certa forma, tornou aqueles poucos minutos em uma eternidade.

A mãe da Nat apareceu na porta e nós ajudamos ela a se levantar. Érick deu um abraço nela e fomos embora juntos. Eu sentada atrás ao lado dela, uma mão no ombro e outra em sua perna (não me aproveitei do momento, claro que não) e ela encostou a cabeça enfaixada em mim.
Acabei ficando na casa dela e nós passamos a noite conversando, fiz ela esquecer a dor por algumas horas e terminamos por dormir no chão, uma por cima da outra. Agora, aquele cheirinho de álcool já não incomodava mais.

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