Trompete II

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- Acorda, acorda.
- O que foi, caralho, que escândalo é esse?
O cara que estava dormindo ficou um pouco confuso, e fechou um pouquinho os olhos, pois estava com a vista embaçada. Quando a visão clareou, conseguiu notar a feição do amigo.
- Tu não vai acreditar, cara.
- No que eu não acredito é na tua incoerência verbal. Vamos lá, fale logo.
- Se lembra daquele cara que estava se candidatando para senador?
- O Broche? Ah, ele é um bosta, um boçal que se acha melhor que todo o mundo. Só se for todo o mundo que estiver numa realidade alternativa.
- Pois é, ele mesmo. É... Bem, a notícia tem a ver com ele.
- O quê? Ele conseguiu ser senador? Puta que pariu, a nossa nação já foi melhor. Pelo menos, antes a gente escolhia corruptos espertos para o governo. Agora, bem, espero que os outros caras do senado saibam lidar com ele, mas todos são uma merda, então não é algo muito relevante para mim.
- Eu concordo com você no que se refere à nossa nação já ter sido melhor, mas o que aconteceu foi ligeiramente diferente disso. Digamos que pior. Ele não é um senador. Ele é o presidente.
- O presidente? Da Assembleia?
- Não, da república mesmo. Cara, você andou debaixo de uma pedra?
- Não, mas eu achei que não valia a pena perder tempo com campanhas eleitorais. Mas eu podia jurar que ele iria continuar como senador.
- Todo mundo pensava isso, mas o cara surpreendeu a todos quando por alguma razão, decidiu se candidatar a presidente. E não só isso, mas o desgraçado venceu.
- Quem foi o boçal que estava concorrendo contra ele?
- Os boçais não é, porque não foram um, foram vários. Corruptos na maioria, alguns honestos, mas você sabe que um político honesto nunca iria conseguir sequer passar das preliminares. Os gigantes da indústria e das empresas, não iriam gostar de alguém que eles não conseguissem manipular.
- E eles acham que vão conseguir manipular ele? Pois não é o que aparenta.
- Por mais que me odeie dizer isso, ele é um gigante empresarial também, então ele sabe lidar com o sistema de forma a dar vantagem a si próprio e quem sabe a alguns amigos próximos.
- Vendo por esse lado, você tem razão. E agora não só temos empresas nos controlando nas sombras, mas também uma à frente do nosso país. Não é como se isso fosse gerar uma guerra civil, espero.
- É aí que você se engana. Nesses 400 anos de história, só tivemos uma guerra civil a uns 100 anos. Mas estamos mais próximos dessa guerra do que nunca. Estudantes universitários marcharam nas ruas após a eleição, por enquanto sendo apenas protestos pacíficos. Mas as minorias do nosso país já estão cheios de medo, com medo da represália dos supremacistas, estamos vivendo um verdadeiro purgo.
- Esses jovens, sempre fazendo escândalo num copo de água. Seria mais fácil ao nosso povo passarem os quatro anos de Broche, do que começar uma anarquia, ou nova revolução. E depois, nós vivemos num país democrático, e por mais que os políticos tenham muito poder, eles não iriam deixar o presidente fazer o que bem entende, afinal, poxa, se fosse assim, para que adiantou sairmos da monarquia? Pelo menos, nós éramos conformados com a velha desculpa de que o sangue faz o rei, e não as qualificações necessárias, mesmo sabendo que eles só tinham recebido seu sangue nobre por causa do apoio da igreja. Agora, se ele quiser dar uma de Napoleão, nós damos-lhe um impeachment, e pronto.
- Mas você se esqueceu da coisa mais importante aqui, do povo. A assembleia, senado ou qualquer outra organização política pode tentar colocar rédeas no cara, mas se o povo quiser que ele mande como se fosse rei, não há nada a fazer. Infelizmente, ele foi capaz de convencer homens (estes sendo apenas meros senhores de meia idade, a maioria com um baixo nível de escolaridade e maturidade também) a se unirem à sua causa, como se ele fosse o único, escolhido para liderar o povo, mesmo sabendo que isso não funciona numa democracia. O povo quer um homem forte que possa tomar decisões que o beneficiem, e quando esse homem aparece, por mais escroto que ele seja, o povo o tolera. Como você acha que nós aguentamos milénios sob regimes totalitários? O homem é um animal social, e como animal social, ele anseia por um lider, alguém que o comande.
- Num regime democrático, isso não é o ideal. Nós não iremos nos arriscar a dar todo o poder a uma única pessoa, foi por isso que temos os tribunais, os ministros, os senadores, e toda essa corja aí, para equilibrar a balança do poder. O poder fica dentro de apenas um grupo, mas sendo esse grupo escolhido por nós, conseguimos controlar um pouco esse balanço. Ele não tem todo o povo ao seu lado. Ele só ganhou como você disse, porque os outros eram tão odiados quanto ele, e teve gente que não votou. Nós vivemos numa democracia, quer ele queira, quer não. Ele não sair por aí fazendo o que bem entende.
- Tenta falar isso para o povo que o suporta. Essa galera aqui só quer saber de um rei, eles estão muito mal influenciados pelos filmes e novelas, e pensam que quando você é um presidente, todo o mundo se curva a seu redor. O presidente é o homem mais forte e mais fraco de uma nação, ele representa apenas o poder do povo nas escolhas, e convenhamos que nesses tempos, nem isso ele consegue, porque a maioria da porra do congresso é constituído pela merda dos outros partidos, porque todos são uma merda.
- Se lembra daquele outro presidente, de há uns anos atrás, quando a gente ainda tava na faculdade? O cara era foda, todos gostavam dele, ele era inovador, pra frente, mas do que adianta o público gostar de você se os outros políticos não gostam? Porra nenhuma né.
Um deles se levantou, ficando em pé, vendo de um lado para o outro, um pouco desnorteado.
- O que você está fazendo?
- Calma, deixei cair o meu celular algures por aqui. Já vou encontrar, só preciso que você se levante um pouquinho.
- Cara, não vai dar, eu estou aqui de boas, não mexi nem um pouquinho, e você quer me tirar do meu conforto por um celular? Você já procurou na cozinha?
- É mesmo.
O cara foi procurar o celular na cozinha, enquanto o outro permaneceu fitando um pouco a sala.
- Velho, a sala está imunda. Que porra aconteceu aqui?
- Isso fui eu mesmo quando estava bêbado. Me exaltei por causa das eleições.
- Mas quem diria, viu? A gente pertencia a dois partidos diferentes, vivíamos discutindo sobre o assunto, e agora, aqui estamos, unidos por uma causa.
- O que os tempos de crise não fazem. Se aqueles bostas no senado e no congresso pensassem para além do seu partido, talvez nossa nação estivesse anos à frente.
O outro voltou com o celular e um iogurte na mão.
- Poxa, você não trouxe um pra mim?
- Vai pegar você. Você não tava reclamando do seu conforto? Então, agora você está atrapalhando o meu descanso.
- E aí, como você acha que vai ser o próximo ano?
- Tem gente que falou em conflitos internacionais, mas eu prefiro tomar a perspectiva longa. O governo vai ser ruim? Muito provavelmente. Mas tenho a confiança que vamos conseguir sobreviver os cinco anos que se aproximam. Mas quem sabe.
- Pois é. O concerto está começando, os tambores e os trompetes tocando, o teatro no seu ato inicial. Se este teatro será uma reencenação do terror frio, ou um festival de cogumelos flamejantes, ninguém poderá dizer. Mas que serão anos atribulados, com certeza serão.

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