Carta para o vocalista.
Eu nunca gostei muito dessas músicas animadas que tocam nas baladas da sexta-feira à noite, eu preferia uma música antiga com um vinho e uma comida boa. Mas como uma boa pessoa, acompanhei minha melhor amiga até o show onde o seu namorado era barman, o Vítor. Calcei minha melhor bota e joguei dentro da bolsa umas palavras cruzadas e um livro de bolso, sempre preparada para as piores ocasiões da vida.
Naquela noite eu fiquei perto do palco – um lugar previamente arranjado – e bebendo uma caipirinha, sem nem prestar atenção no cara que entrava para apresentar as bandas da noite. Tirei minha caneta do bolso da jaqueta e comecei a procurar "paralelepípedo" entre as linhas das folhas. Nina me cutucava em uma musica ou outra para reclamar, para tirar foto comigo – ou de mim – e até para avisar que ia pegar mais uma bebida grátis no bar. Boato! A bebida que ela queria tinha nome, sobrenome e fazia a melhor caipirinha que eu tinha experimentado – não que eu fosse expert no assunto.
— Eu vou ao banheiro, Keyla. — Ela me avisou, me cutucando com as unhas longas e afiadíssimas. — Fica de olho na minha bolsa, tá?
E eu fiquei, fiquei quase dormindo na quarta música que a banda tocava. Nem prestei atenção quando o vocalista aplaudiu e saiu do palco, eu estava fazendo um círculo ao redor da palavra "materialista". Aquietei-me mais no canto quando umas garotas ao meu lado aplaudiram histéricas. Pedi uma água ao garçom e estranhei que Nina ainda não havia voltado, provavelmente tinha se perdido por aí. Quem sabe?
— Ei, você aí... — Escutei uma voz grossa. — Qual sua música preferida?
A voz ecoava pelo espaço pequeno, quando eu vim me dar conta de aquela cena digna de filme estava acontecendo comigo, foi quando percebi que as garotas não estavam gritando. Todos olhavam na minha direção, a louca das palavras cruzadas.
— Responde. — Um cara barbudo gritou.
Foi quando eu olhei para o vocalista pela primeira vez na vida. Os cabelos encaracolados no ombro, a pele negra e os olhos castanhos olhando na minha direção, se eu pudesse dizer como eles eram, seria mais ou menos "olhos escondidos do tempo", sabe? Não importa quaisquer situações, quaisquer momentos, eles seriam exatamente daquele modo. Vivos.
— Ainda é cedo, Legião Urbana.
Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei
Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir
O vocalista pelos gritos se chamava Matheus e eu, Keyla, nunca havia visto naquela sexta-feira alguém cantar assim. Ou talvez tivesse. Essa era a minha música preferida, da vida. A maioria das pessoas cantava baixinho com medo de estragar a melodia que havia se instalado no momento, e eu? Nem cantava. No refrão eu soltei a voz, pensando na letra e no legado que ela deixava.
— E eu dizia ainda é cedo...
Eles eram a última banda da noite e quando a música acabou, e todos foram embora ele perguntou meu nome e o telefone. Descobri o sobrenome dele logo depois, que ele estudava Biomedicina e tocava ali há exatos dois anos.
— Você está sorrindo? O que aconteceu? — Nina perguntou. — Eu passei mal, com certeza foi aquela pizza congelada.
E eu não sabia o que dizer.
Todo dia, há dois meses, ele me manda uma música de manhã.
Menos hoje.
— And when she needs to shelter from reality, she takes a dip in my daydreams... — Ele tem o braço ao redor do meu pescoço enquanto canta para mim, Arabella, Arctic Monkeys.
Essa carta foi deixada no metrô de Porto Alegre.
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Reza A Lenda
CasualeQuando uma carta aparecer em um dos bancos do terceiro vagão de um metrô, leia.