Lá na curva o que tem ? Capítulo 2

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Certa manhã fui para o centro da cidade e sentei-me numa praça onde costumam concentrar-se muitos meninos de rua. Fiquei observando-os e, em cada menino encontrava um pouco de meus  alunos. Sentia vontade de me aproximar, dizer alguma coisa, mas não sabia o que dizer.

Um dia conversei com a minha supervisora de estágio sobre os meninos de rua, sentia um desejo muito grande de ser útil para eles.

Consegui o endereço do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e filiei-me . Participei de um encontro de educadores e passei a entender o que acontecia comigo: educadora por vocação e não apenas profissional.

Retornei a escola não mais como estagiária e sim como educadora de rua do Movimento Nacional Dos Meninos e Meninas De Rua.

Apresentei um vídeo sobre os meninos de rua e fizemos um debate em cima do tema.

Fui recebida na escola com muito carinho. Fernanda me dera uma rosa e Luciana uns brincos de presente.

O que eu queria eu consegui: a escola cedeu espaço para o movimento trabalhar os meninos e meninas da comunidade.

Dois militantes do movimento, Adriane e Jorge, se somaram  e começamos ir a escola todas as quartas-feiras à noite.

Tudo isso que fiz foi pensando em ser útil de alguma forma para os meus alunos.

Tenho ido todas as quartas-feiras na escola me encontrar com os meus ex-alunos como havíamos combinado.

O nosso primeiro encontro foi perfeito, todos os meus alunos vieram ao meu encontro, neste dia apresentei Adriane e Jorge, militantes do movimento dos meninos e meninas de rua, para eles.

No segundo encontro, lotamos o refeitório para assistirmos a palestra do psicólogo João Poletto, que falou sobre drogas e sexo.

Nessa noite comecei a adoecer e fiquei mais de vinte dias com crises de asma e emagreci muito.

Estranhos são os desígnios de Deus e precisamos viver muitas lições até que se possa realmente dizer: - aprendi.

Vivenciamos muitas coisas enquanto aprendemos alguma coisa, e as vezes essas lições possuem trechos desagradáveis, como se houvesse uma resistência muito grande na nossa direção.

Ainda não estou conseguindo elaborar na minha razão, este processo lento que é o trabalho de militância, entre organizar e realizar algo mais concreto.

É difícil ter que recomeçar, voltar atrás, e sei que é o que eu devo fazer, voltar a comunidade, abordar os meus ex-alunos novamente.

É difícil, não tenho força, se ao menos a escola se unisse a minha luta.

Não basta o aval, é preciso unir força...

Jorge certa vez, disse uma coisa muito certa:

- Eu não preciso que me digam o que eu vivo. A minha realidade eu bem sei e ficar falando nela dói. Ninguém do movimento vai mudar essa realidade, por isso nós os meninos de rua queremos coisas diferentes que não podemos ter dentro de uma sociedade maior e não ficar apenas lembrando que somos menores sem privilégio algum.

Pude analisar o  trabalho , percebi os altos e baixos, avanços e recuos que tive na caminhada.

Conflitos internos, horas de graça e vacilação e sentia o silêncio dos fatos numa grande noite dentro de mim, hoje constato uma verdade mais consoladora.

Sinto-me gente demais quando sou maternal, ou simplesmente mulher, mas capaz de atender, de acolher, se isso é agir como menina de rua, eu sou, mas não menina, mãe de rua, amiga de rua, companheira de rua... Utopia?... Loucura? Só me pertence de fato o mundo que trago dentro de mim.

Apesar de... a vida é linda, maravilhosa enquanto um último coração fraternal conservar um resto de gratuidade.

Basta querer de verdade, definir as metas, crer nos homens, em Deus e em si mesmo. Com fé, otimismo e perseverança.

Quando olhamos em volta e vemos tanta pequenez, tanta opinião menor e restritiva, tanta disputa tola por tão pouco, tanta falta de grandeza, tanta barbárie e estupidez em nome de idéias e ideais...gente de cabeça arrumada, lógica e super lógica, anda sobrando... enquanto que há vazios existenciais que só o amor preenche, há muros que só a amizade derruba e pontes que só a fraternidade constrói.

É da profundidade de uma convicção e não do simples protesto que brota sempre a plenitude da vida, que jorra a força invencível das transformações substanciais, no mundo, na sociedade.

Quem tem esta profundidade é capaz de realizar mudanças válidas na sociedade em que vive. Há nele algo de maravilhoso e desconcertante que os derrotistas ignoram por inteiro, algo de sagrado e misterioso que aflora atingindo a vida de seus semelhantes.

É somente no seu grupo que o adolescente infrator se sente alguém, sendo tanto mais respeitado, quanto mais malandro for, quanto mais apto estiver para responder aos desafios de sua vida.

O adolescente infrator é um sujeito que mantém o que ele denomina decência e que precisa aprender a ser malandro, a jogar com a vida, entre a prisão e a morte para resistir as condições anti-sociais de existência que lhes são impostas.

Ainda me emociono muito quando lembro e falo dos meus alunos, é como se eu perdera um pedaço de mim.

Dói como se fosse arrumar o quarto de um filho que já morreu.

Mas acredito que qualquer dia desses  lembrarão de mim, talvez volte a me procurar, essa distância é um intervalo onde nenhuma resposta é suficiente quando se busca o universo bem dentro do outro.    Hoje eu e meus ex-alunos somos bons amigos, eu para eles sou toda paixão, eles para mim são aves de verão.

"Estou saindo do paternalismo para uma linha mais política. Hoje me permito traçar um paralelo do tempo em que mantive guardado no peito os meus sonhos de menina e fui mulher, onde afoguei os meus sonhos de mulher e fui mãe e hoje essa mulher que sou ,nascendo para a política sentindo e registrando a vida que passa."



Os Ninjas do BueiroOnde histórias criam vida. Descubra agora