Marcelo vara de marmelo Capítulo 4

24 1 0
                                    

Havia jurado para mim mesma que não me envolveria com novos grupos de meninos de rua. Os que eu conhecera já eram muitos e não teria condições de relacionar-me com tantos.

Foi só descer do ônibus em frente da universidade e a armadilha estava pronta. Meninos cuidando carros no estacionamento em frente a universidade.

Disse para mim mesma que não os abordaria faria de conta que não os teria visto. Por mais que eu quisesse, minhas pernas não andavam em direção contrária e me vi diante dos garotos.

- Qual o teu carro tia?

- Nenhum.

- Dá um trocadinho?

- Não tenho. Vocês estão sempre por aqui?

- Sempre, a gente trabalha aqui.

- E o que vocês fazem?

- Cuidamos dos carros.

- E é legal? Vale a pena? A grana é legal?

- Como é o teu nome?

- Clóvis.

- Clóvis? Que olhos lindos que tu tem. São verdes? Quantos anos tu tem?

- Tenho dez.

- E tu fica aqui o dia inteiro?

- Até de noite.

- E as pessoas te tratam bem?

- As vezes sim. Quando fura um pneu não dão troco, xingam o cara e ainda dizem que a culpa é da gente.

- E tu não faz nada?

- Fazer o que...

- Me diz uma coisa : Tu gostaria que viesse alguém aqui fazer algumas brincadeiras com vocês? Tipo desenhar?

- Eu gostaria, só que é meio ruim. Os grandes roubam o ponto da gente e cobram por nós se nos desligamos.

- E se for na hora que não tem movimento?

- Aí seria legal. Tu tem papel tia?

- Amanhã eu venho tá?

- Ah, meu nome é Denise. Eu sou do movimento dos meninos de rua.

- Tu já ouviu falar nesse movimento?

- Eu não.

- Amanhã eu te conto tudo, tá? Agora posso te dar um beijo?

Beijei o garoto e saí sorridente, cheia de planos.

Passaram-se os dias e nos encontrávamos todas as manhãs. São em torno de 15 meninos guardadores de carro.

Hoje somos bons amigos, alguns até me visitam na minha casa.

Um dia Clóvis me disse assim:

- Sabe tia, tem coisas que eu não entendo muito. Eu cuido carro, lavo carro, lustro carro, troco pneu de carro de moça bonita, ganho troco e xingão. Ta chovendo, os doutor vão embora e não me perguntam se eu quero uma carona.

- Uma vez ganhei uma carona até o hospital. É porque um ônibus jogou um carro em cima de mim e do meu irmão, nós fomos atropelados então andamos de carro até o hospital do outro lado da rua.

Nossos encontros são sempre assim. Atravesso a Ipiranga de um lado pra outro vou no ponto de cada menino e eles me contam muitas coisas, passo horas com eles, ajudo a dar lustro nos carros, aviso quando algum freguês está saindo sem dar gorjeta, busco bergamota pra comer com eles. Quando tenho dinheiro, levo pipoca, bolacha e balas.

Um dia conheci Marcelo. Menino negro, 14 anos muito parecido com o meu pequeno príncipe Charles. Marcelo é especial, já caiu três vezes na FEBEM. Uma porque roubou um relógio, outra por uma bisnaga de cheiro e outra porque roubou um chinelo.

Marcelo pede tudo, dinheiro, comida e roupa pros donos dos carros. Fura os pneus e depois cobra pra consertar e se o dono do carro não paga o conserto, dias depois o seu carro é arrombado, roubam o toca fitas e Marcelo não viu.

João é parceiro de Marcelo, ambos quando me vêem, pulam no meu pescoço e dizem que eu sou namorada deles. Me beijam no rosto, me abraçam, caminham com a mão na minha cintura mas nunca passaram a mão em mim.

Me chamam de gostosa e dizem que um dia ainda vão casar comigo.

João esta sempre chapado de loló. Os dois passam os dias na rua quando não vão pra vila. As vezes pro albergue e ficam semanas sem aparecer no estacionamento.

As vezes tomam banho, se arrumam e vão me visitar na minha casa.

Damos muitas gargalhadas na calçada, falamos coisas sérias e as vezes besteiras.

Marcelo é um menino com aparência de dar medo a qualquer um e paquera todas as mulheres bonitas que deixam os carros sobre os cuidados dele.

Um dia estava conversando com ele, correu para cobrar um carro que estava saindo. Enquanto eu aguardava passou um homem por mim e me disse:

- Que loirinha gostosa. Vamos ali atrás da árvore que eu pago bem.

Mandei o homem longe. Marcelo veio correndo e perguntou:

- O que houve tia?

- Nada, Marcelo, só aquele tarado que me convidou pra ir atrás da árvore. Marcelo saiu correndo e pegou o homem pelas costas e levou ele na porrada até uma árvore. O cara correu e ele voltou limpando as mãos. Me abracei nele e disse:

- E eu que pensei em cuidar de ti.

Um dia encontrei Marcelo mancando na calçada.

- Levei um tiro tia.

- E tá com a bala na perna?

- Não, pegou de raspão.

- Tu foi ao médico?

- Eu não, isso dá polícia.

- E tu não tá passando nada?

- To.

- Mentira, deixa a tia ver.

- Ah tia, eu não vou tirar minha calça pra senhora.

- Deixa de bobagem guri, eu quero ver.

A bala raspou entre a perna e a nádega esquerda.

Fiquei apavorada.

- Como foi que aconteceu isso.

- Guerra de gangue tia.

- E fica por isso mesmo? Tu leva uma bala perdida e não denuncia?

- Denunciar? Tia, eu moro entre a Divinéia e a Bom Jesus, eu denuncio hoje, amanhã eu como uma bala.

No outro dia, consegui medicamentos e começamos a tratar a ferida .

Os meninos da Ipiranga trabalham duro, vivem dos trocados que ganham, não vão a escola, ficam na chuva e no frio, usam o banheiro das lotações ou da PUC, quando comem é um cachorro quente da carrocinha.

Os maiores exploram os pequenos na hora de cobrar um carro, arriscam suas vidas no meio da rua e só andam de carro quando são atropelados.

Evanir tem 12 anos e vem para o estacionamento junto com o avô de 60 anos que o cria.

Alguns meninos vem de longe, como de Viamão. Mau vestidos, passam frio e fome diante de uma universidade que nunca entrarão.

Por eles passam educadores, médicos, dentistas, advogados, assistentes sociais... padres... apenas passam... passam as mãos em suas cabeças, quando não, apenas passam, como passam-se os dias.


Os Ninjas do BueiroOnde histórias criam vida. Descubra agora