Luto

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◞ ◟ Primeira máscara ◞ ◟

Clarões luminosos refletiam nas paredes, fortes como um farol. Senti meu corpo sendo levantado, ainda semi-inconsciente, abri meus olhos estreitamente e assisti o chão enquanto me arrastavam. Desfaleci novamente.
Minha aldeia se encontrava ao norte de Terras Nevadas, logo atrás das Grandes Montanhas, esses montes eram reverenciados por nós como entidades, são três picos enormes simbolizando os divinos trigêmeos : Trelor, deus dos céus; Port, deus dos mares e Madik, deus do solo.

Acordo em meu quarto com uma mão pressionando uma toalha sobre meu rosto.
— Mãe ?!
Estava chorando aliviada e me beijou no ombro. Logo depois, meu pai que estava atrás da porta, entrou e esboçou um sorriso enquanto acariciava meu cabelo.
— Que bom que estás bem— disse ele.
— Sam... —ergui-me da cama e me pus sentado. —como está Sam?
— Sua amiga passa bem— meu pai olhou a esmo com tom de tristeza, depois me fitou. — mas infelizmente perdeu muito sangue, tiveram que amputar uma das pernas.
Coloquei a mão sobre a testa indignado, mas ao tocar, minhas feridas ainda ardiam. Olhei ao redor a fim de encontrar o espelho, coloquei os pés para fora da cama preparando para me levantar.
— Filho, descanse um pouco mais— alertou minha mãe.
— Já estou bem, vou só no banheiro.
Minha visão já se encontrava estável, estava bem recuperado e caminhava normalmente. Enxerguei um rosto totalmente desfigurado diante o espelho do banheiro, três cicatrizes decoravam diagonalmente minha face, dancei meus dedos pelas suturas. Meu rosto jamais seria o mesmo.
Sai do meu quarto e pedi ao meu pai que me levasse até Sam. Seguimos pelo comércio, onde diversas crianças encaravam-me com espanto, não pude deixar de perceber todo falatório que as pessoas cochichavam. A casa de Sam, ficava a um lote de distância.
— Pai, aonde estamos indo?
— Sam está na casa da curandeira.

A curandeira era uma anciã muito querida na aldeia, especializada em diversos medicamentos. Tinha uma coleção de ervas medicinais, sempre que possível negociava algumas com os aldeões. Mas o nome "curandeira" era um tanto quanto equivocado, as curandeiras que conhecia das histórias eram feiticeiras capazes até de trazer alguém à vida, e ela não tinha nenhum conhecimento místico, sua eficiência soava mais para uma médica.
Chegando ao recinto, notei os pais de Sam sentados angustiados na escada, ao lado deles estava Tummer, um estrangeiro que estava há alguns dias residindo na vila. Era um aluno de medicina especializado em cirurgias, havia trancado o período na Universidade em prol de uma carta que o chamava até Céssero. O mais cômico e questionável era como ele se perdera em sua rota e terminando aqui no norte, direções completamente opostas.

— Meus pêsames, senhor e senhora Coyle — lastimou meu pai.
— Obrigado por se compadecer, Aldrin — agradeceu a mãe de Sam e desviou o olhar para mim - O seu garoto se recuperou bem.
Meu pai sorriu e tocou em minha cabeça.
— Desculpem-me, não pude protegê-la — lamentei.
— Está bem, não se culpe, o importante é que ela saiu com vida — a mãe de Sam levantou e deu-me um beijo na testa— e você também.
A Sra. Coyle era uma moça de idade muito bem formosa— Sam a herdou bem —, cabelos louros escuros e uma mecha branca que não escondia a idade, mas ainda assim atraente. Seu marido era muito mais velho, tinha uma marcenaria, aonde vinha o sustento da família.
— A família de Tom, como está? — questionou meu pai.
— Estão em prantos, vão fazer um funeral logo mais tarde - respondeu Sr. Coyle — um enterro de caixão vazio.
Pedi licença para entrar e o médico estrangeiro me acompanhou até o quarto.
— Suas suturas estão bem feitas — reparou Trummer.

Assenti com a cabeça.
Chegando à porta do quarto, o médico abriu e com um gesto educado permitiu que eu passasse.
Sam estava desacordada e coberta sobre a cama inundada de sangue, aproximei-me e observei ela respirar.
— Sua amiga foi bem resistente, nunca vi alguém com tanta vontade de viver. — concluiu Trummer.

— Vai demorar muito para ela acordar?— indaguei.
— Talvez ainda hoje — concluiu colocando suas mãos em meu ombro direito. — mas será complicado receber essa triste notícia, esteja pronto para apoiá-la.

— Obrigado doutor... —abracei-o pela cintura, ele era muito alto. — por salvar a Sam.
— Ora, apenas fiz meu trabalho — sorriu. — Vou deixar vocês a sós, só não a toque.

— Tudo bem, serei breve.
O rapaz e alguns assistentes deixaram o quarto. Fixei meu olhar naquele rosto desfalecido, pude contemplá-lo uma vez mais, era confortante. Conversei algumas coisas por alguns segundos e depois encontrei o colar de pote sobre a cabeceira. O sangue já estava seco e sem a rolha que o tampava. Peguei e coloquei no pescoço, depois arranquei a tampa do meu pote vazio e fechei o pote com o sangue de Sam.

◞ ◟ Adeus ◞ ◟

Toda a vila se encontrou a oeste da aldeia, sob uma enorme árvore aonde chamávamos de Mortório.
O sacerdote caminhava, batendo seus sinos enquanto clamava preces. Logo atrás quatro empregados, cada um segurando em uma ponta do caixão.
Andaram até a borda da sepultura e lançaram dentro o féretro. O coveiro estava ao lado, apoiava seu corpo na pá rezando antes que pudesse enterrar.
Enquanto o sacerdote termina a última prece, o público lançava flores à cova. A mãe de Tom chorava desesperadamente sobre o peito de seu marido.
Após a cerimônia cessar, fui dar as condolências à família de Tom. Seu pai era um ex-combatente, serviu a Coroa por anos; sua mulher, Enna, trabalhava na oficina do seu sobrinho, lavava os materiais e cuidava da limpeza do ambiente. Ambos de estatura alta e porte físico cheio, bem ao contrário de Tom.

— Sinto muito — lamentei.
O senhor tocou em meu ombro como agradecimento.

— É bom te ver, Lionel — disse o pai de Tom encarando minhas cicatrizes — Bom, acho que vai carregar essa tragédia pra sempre.
— É bom que vocês sobreviveram, mas carregarão no corpo algo além de memórias — Completou sua esposa.— que os deuses cuidem de Sam.
— Passarei mais tarde para cuidar dela — afirmei com tom de choro —Se não estivéssemos demorado tanto para regressar, nada disso teria acontecido, Tom estaria aqui, Sam estaria correndo feliz pelos campos...

— Não fique se remoendo — a moça alisou meus negros cabelos com seus dedos roliços.— As coisas acontecem como devem ser, agora já passou, vamos aceitar tudo e agradecer os vossos livramentos.
Enxuguei-me uma última lágrima.




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A Canção da GeadaOnde histórias criam vida. Descubra agora