☽ Amizade ☽
Assávamos lebres sentados perante o calor da fogueira e sob o lindo luar que pairava na floresta congelada, a aurora dançava no céu com sua música silenciosa, talvez houvesse no céu uma orquestra entre os deuses, talvez uma festa de casamento da virgem de Trelor, mas seria heresia pensar isso, o importante é que eu nunca esquecerei daquele momento.
Tom ajudava Sam esfolando a pele do roedor com sua branda espada de aço, enquanto isso eu afinava o velho alaúde, coloquei de volta uma corda que havia soltado, já era hora de uma nova carcaça, meu primeiro e único instrumento, é muito difícil desapegar de coisas tão especiais assim.
Desviava meu olhar para Sam, uma garota modesta, sua pele era alva como a neve e tinha um sorriso contagiante, o que mais me chamava atenção era sua voz, soava tão sublime, adorava quando a tirava para um dueto, seu canto suave e seu cheiro que acalmava até o vento . Meu forte é o dedilhado, minha voz nunca foi boa, me engasgava fácil com as palavras, talvez pela ansiedade, e é por isso que ela me completava.
Tom, meu melhor amigo, era um rapaz robusto, galante e alto, eu diria que o jovem mais bonito que já tivera em toda aldeia, tinha um sonho de servir o exército de espadachins da realeza, seu pai é um ex-combatente aposentado, o que o inspira muito. E sim, eu o invejo um pouquinho assim, mas bem pouquinho, talvez por sua lábia e a atenção que recebe de todos, particularmente a atenção de Sam, já faz um tempo que percebo suas trocas de olhares recíprocas.
— Aiii, tá quente!!! — Sam mordia afobada a carne.
— Ei, vá com calma, preciso te ensinar a comer? — brincou Tom com olhar irônico.
Sam desdenhou, logo em seguida Tom me chama:
— Lionel, sua lebre vai esfriar, aproveita e se aproxima mais de nós.
Sorri, terminei de afinar o alaúde, me aproximei do casal e mordi minha lebre.
— É um imenso prazer passar meu décimo sexto aniversário com amigos tão especiais. Precisamos marcar nossa união para sempre — disse Tom, deu uma pausa e puxou do bolso dois frascos de vidro. — Esses frascos são pra vocês, quero que coloquem nele coisas especiais, quero que cada um crie seu próprio amuleto e atribua um significado.
— Ó que lindo, nunca achei que faria isso, Tom — retruquei — Bom, prometo que encontrarei algo interessante.
— Uau, obrigada Tom — agradeceu Sam e continuou — E ainda tem um cordão, posso levá-lo no pescoço !
Tom riu timidamente e se dispôs a amarrar o colar no pescoço de Sam, enquanto isso dedilhei.
— Uma música para Tom e para nossa amizade ! — toquei alguns acordes— Vamos, essa vocês conhecem. — puxei o ritmo.
Bateram palmas e cantaram uma tradicional música na nossa aldeia, era sobre um velho egoísta e ranzinza e seus escárnios. Era um momento sublime para nós, a música, o cheiro de carne queimada, o céu boreal, tudo ia muito bem.☽ Sombras na colina ☽
— Mais uma, Lionel, mais uma! — implorou Sam com grande animação— Toca aquela sobre o cordeiro que se perdeu do rebanho.
— Não Sam, essa faz me lembrar da infância, das vezes que ia ao culto, tocavam quase sempre no cardol*, tenho a música na cabeça, que chatice! — reclamou Tom. (*cardol = escola bíblica para crianças)
— Ora, deixe de ser apático— Sam retrucou e começou a puxar a música — Vamos Lionel, "Era um cordeirinho muito frágil..."
— "Tão pequeno e tão covarde, tudo para ele era vil" — prossegui.
—"Mas um dia foi atrás da liberdade" — acrescentou Sam e continuamos.
Tom virou-se o corpo pra trás desdenhando e começou a observar as colinas entediado. O vento dançava forte, era um vento gelado, lançava vários flocos nevados sobre nossos rostos, a lua estática, nos observava, era tarde, era hora de regressarmos, mas mal demos conta da hora.
— "Agora perdido não sabia aonde ir" — cantarolava Sam, até que larguei os dedos do alaúde e fiquei por um instante paralisado, olhei para Sam, que sem entender nada me encarou confusa. Uma das qualidades de um músico é ter boa audição, diferenciamos cada tom e nota, naquele momento fiquei inerte esperando o som que ouvira se repetir.
O som se repetiu e ainda mais forte, olhamos todos assustados, eram uivos.
— Não pode ser, wargs nessa parte da floresta? — questionou desesperadamente Tom.
— Oh,por Trelor!! Vamos nos apressar, devem estar próximos. — cogitou Sam com voz trêmula.
Tom rapidamente empunhou sua espada e começamos a pegar os pertences.
— Estamos há uns quinhentos metros da aldeia, temo que nos ouçam correndo, sabe como dizem as lendas sobre os wargs, tem ouvidos e narizes magnifícos, não seria melhor nos escondermos? — perguntei a eles com voz sussurrante.
— Vamos devagar, o frio talvez atrapalhe o sentido deles — retrucou Tom. — Eu ainda não creio que essas feras existam mesmo na região, achei que eram lendas do pessoal do Sul.
Sam com expressão de medo cutucou Tom e com a garganta escassa de palavras apenas apontou para a colina. Eram duas sombras gigantes que desenhavam o horizonte, os lobos gigantes pararam e uivaram, observamos fixamente sem mexermos um músculo até que os wargs começaram a caminhar lentamente em nossa direção.
— Corram — sussurrou Tom, segurando firmemente a espada.
Corremos, exploramos o limite de nossas forças, porém o chão lúbrico não colaborava, rumamos para uma caverna próxima que Tom apontara. Uma caverna gélida e escura que se tornara agora um labirinto, perdidos no negrume, caminhamos até parecer calmo.
Chegamos a uma região onde refletia-se a luz lunar pelo teto da caverna, à frente havia uma ponte estreita de gelo sob um abismo, Sam estava muito pálida e agitada, agarrei-a fortemente nos meus braços, compartilhamos o nosso medo — Não quero morrer— ela sussurou, abracei-a mais forte confortando. Ao apertar fortemente meu dorso, notei que deixei cair meu alaúde no meio da fuga. Enquanto isso, Tom vigiava atentamente para todos os lados, manejava a espada de um lado para o outro, como se estivesse dançando.
— Fiquem atentos para correr — Alertou Tom.
De repente ouvimos passos etéreos e longos que cesseram rapidamente, atentamos silenciosamente e sem mover um passo. Não deu muito tempo para sentirmos alívio, algumas ofegações das feras soaram alto, eram narinas barulhentas.
— Andem! Eu fico na sentinela — ordenou Tom com seriedade, nunca o tinha visto tão sério, sua face expressava responsabilidade.
— Tom, não vamos deixar você para trás — correu Sam em direção a Tom, banhada de lágrimas agarrou em seu braço esquerdo — Por favor Tom, juntos !
Sobre o gelo, rasuravam o chão as garras que agora corriam aceleradamente, Tom empurrou Sam para o chão, ergueu sua espada ferindo a fera que ficara em pé para o ataque, o golpe rasgou o peito e o animal recuou. O segundo warg rosnava, encarou Tom com um olhar penetrante por um tempo, depois latiu em direção a Sam que se encontrava caída, no desalento, arranquei um estojo de tintas que carregava na cintura e lancei contra o warg atroz.
A reação não foi nada ideal, o warg furioso voou em minha direção , corri desesperadamente em direção contrária, a adrenalina pulsava , meus passos deslizavam, estava quase cruzando a ponte e escorreguei no solo glacial, virei-me para a fera, não tive tempo nem de contemplá-la, logo me deferiu um golpe rasgando minha face com suas garras agudas.
Tom que acompanhou a caçada logo atrás, feriu um golpe em uma das nádegas, o animal virou-se e lançou uma patada, a garra cortou o ar, Tom conseguira se esquivar, porém cambaleou no chão, a fera saltou sobre ele, mas felizmente deitou-se sobre a espada que Tom ergueu ao cair, um golpe crítico, a espada feriu próximo ao coração, o que fez o animal debilitar-se.
Do outro lado, Sam gritava de dor, o segundo warg havia rasgado parte de sua perna. Atordoado e capotando, apressei-me para empurrar o animal que esmagava Tom, era um warg azul, bem alto, talvez dois metros e meio de altura, o animal começou a latir em tom de choro enquanto o arrastava para a parede. Eu já estava sem forças, e agora com minha visão embaçada com o rubro do meu sangue escorrendo. Recompus Tom que levantou-se para ajudar Sam, sentei ao lado de uma parede com as mãos sob o rosto.
Não observei mais nada ao redor, era como se o tempo estivesse lento, só pude prestar atenção nos sons, no choro de Sam, nos gemidos de batalha de Tom, o warg do meu lado rastejando-se depressa, senti o chão estremecendo, como se o gelo se partira em milhares, simultaneamente ouvi outros dois sons conjuntos, alguma exclamação com a voz de Tom e o choro das bestas.
— Não, Tooom!!! — esperneou Sam.
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A Canção da Geada
FantastikUm bardo veterano e misterioso resolve narrar partes de sua vida a uma trupe com qual está viajando em busca de um grande tesouro. Conta sua história e a origem de seu alter ego fim : "O poeta das mil luas" Sempre muito misterioso e articulado, esc...