Ao seu lado

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              ✤ Conversa 

— Ainda dói, mas já me sinto mais aliviada, obrigada — afirmou Sam. — Foi uma aventura e tanto — riu.
Lhe fazia carinho no rosto. Um rosto sublime manchado por uma máscara de angústia, uma máscara morta e cansada, mas não importava o quão escondida estava sua beleza, eu ainda era capaz de encontrá-la. Seu cabelo loiro estava seco e crespo; sua pele alva, agora ganhava tons de vermelho e preto.
— E o seu rosto... — brincou Sam. — Está horrível.
— Oh, obrigado, tenho certeza que minha auto estima melhorou agora — ironizei.
Ela riu e depois olhou fixamente para a perna com pesar.
— Pelo menos você poderá passear com sua feiura — disse ela, tristonha.
— Conversei com o armeiro, ele pode construir um carrinho pra ti — O armeiro construía todo tipo de bugiganga para os agricultores, um carrinho seria ótimo para carregar ela.

Sam virou seu rosto para a janela fechada do quarto e permaneceu em silêncio por uns instantes observando a chuva.

— Prometo que te levarei aonde você quiser, o céu é o limite — tentei quebrar o silêncio, mas falhei.
Eu adorava noites com chuva, era o clima perfeito para um bom sono. A chuva é como uma música que a própria natureza nos oferta, as gotas são os dançarinos que sapateavam, às vezes querem sapatear tão forte que caem em forma de gelo, as trovoadas eram tambores que os espíritos tocavam pra aumentar o ritmo dessa orquestra. Mas quem é o maestro de tudo isso? Os deuses, talvez.

Um passáro pousou na janela e se debatia contra o vidro tentando se esconder da chuva. Sam apontou para a janela, pedindo para que eu abrisse. O pássaro pulou na cômoda ao lado se debatendo de frio. Peguei uma toalha e cobri a ave, era um pardal ainda jovem. Reconheci, pois meu falecido avô decorava o canto de todos os pássaros da região, me ensinou, ainda pequeno tocar gaita ouvindo os sons das aves. Era um bom treinamento para reconhecer sons.

— Veja, a asa dele está machucada — mostrei para Sam.
— Ótimo, agora são dois aleijados para você cuidar — brincou.
— Bom, já que vamos cuidá-lo, que tal pôr um nome? — sugeri.
— Tom.

Concordei com a cabeça. Enrolei a toalha no chão em formato de ninho e deixei o pequeno Tom ali. Depois fui à cozinha da estalagem e pedi algumas tigelas e alguns grãos. Posicionei duas tigelas ao lado do ninho de peno, uma tigela com água e outra com grão de trigo.
Tentei fazer com que Tom se alimentasse, mas me ignorou totalmente.

Olhei para Sam, estava novamente com sua máscara deprimida. Meu avô sempre me dizia que existia coisas além do ego, ele chamava de máscaras. O ego é a parte consciente de um ser, ele quem analisa as consequências de nossos desejos inconscientes e os seleciona. As máscaras às vezes são reflexos de emoções inconscientes que o ego se deixa levar — como a tristeza, a ira, a depressão — ,ele chamava isso de ego negativo. Mas as máscaras também podem ser formadas por impulsos conscientes, onde tentamos moldar totalmente o ego fingindo sentir ou ser algo, pode-se chamar de alter ego ou ego positivo.

— Sam, vamos jogar "Adivinha"?
Adivinha era um jogo muito comum entre as crianças do vilarejo, geralmente jogado entre duas pessoas. Um jogador pensava em algum objeto, pessoa ou animal e a outra deve adivinhar com perguntas objetivas, quem acertar com o menor número de perguntas é o vencedor.
— Hm...Deixe eu pensar — sua máscara deu lugar a um rosto prestes a ser entretido. — Certo, já pensei, pode perguntar.
— Eu sou um animal?
Ela confirmou com a cabeça e esboçando um sorriso.
— Eu sou um animal... — tentei imitar um animal com garras e dentes. — feroz?
Acho que não imitação bem apropriada, mas por sorte passou despercebido.
— Oh, com certeza, tão feroz como tu — Sam deu uma gargalhada baixa.
— Já sei, sou um pobre passarinho aleijado com medo de chuva — Olhei confiante.
— Errou. Era uma galinha, seu bobo — riu com a língua para fora.
Olhei para ela inconformado, era marcante vê-la sorrir.





              ✤ Dever

— É, acho que essa chuva não parar — falei, encostado na janela.
— Dorme aqui, vai poder me contar histórias a noite inteira — sugeriu Sam.
Era gratificante saber que se importava com minha companhia.
— É, pelo visto não vai ter outra solução.

A Canção da GeadaOnde histórias criam vida. Descubra agora