Ciúmes - Doença da Alma

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Dois amigos, Dionísio e Emanuel, dialogavam fervorosamente sobre suas paixões. Estavam sentados frente a frente enquanto bebiam e filosofavam em um pub escondido entre casarões na cidade natal de ambos, em Sabará. Debatiam sobre doenças da alma, em especial sobre a pior delas, ciúmes.

Emanuel acreditava que estava prestes a perder sua esposa que já estava esgotada de se sentir acorrentada por esse mal que corrói o amor.

— Como pode dizer que Isabela pretende seguir seu caminho o deixando para trás? — Perguntou Dionísio. — Não sei de onde tirou essa ideia. Creio que está delirando ou estaria lembrando de seu passado?

— Tenho certeza disso. Ela não me quer mais. Tenho provas e culpa é minha!

Emanuel então lhe mostrou uma carta que havia encontrado em uma caixa que sua esposa escondia dentro de um armário. Queria que o ajudasse a decifrar seu conteúdo.

O texto dizia o seguinte:

"...Conta—se na mitologia sobre um ser chamado Ícaro que para fugir de seu cárcere em sua total insanidade colou penas de pássaros com camadas de mel e viajou até aos céus, mas ao chegar próximo ao sol suas asas derreteram e ele se perdeu no infinito do oceano... Creio que essa estória foi criada por um poeta que viveu uma estória semelhante à minha e a transformou em poesia...Quando a conheci julguei ter alcançado aos céus com asas de Icaro, porem as minhas eram feitas de sentimentos e de desejos impuros e mundanos de possessão e domínio e elas se desfizeram tal qual as dele, quando senti um infinito calor possuir o meu corpo com o sol. Caí como uma estrela cadente que passa pelo céu inspirando pedidos aos deuses por quem me via como uma luz. Talvez ela também tenha me visto cair, ou simplesmente me viu passar por sua vida como essa estrela... Mas essa fraqueza que senti e o mundo que me mostrou não foram suficientes para que eu deixasse de lado meus desejos mundanos e ainda hoje eles insistem em me dar novas asas e é por isso que eu creio não poder mais me aproximar de ti...Escrevi essa carta para Isabela um pouco antes de morrer. A Idealizava uma deusa responsável por alimentar todos os meus sentimentos e desejos. Julgava que ela poderia possuir guardado em seu coração todo o amor, afeto e consideração que eu buscava e poderia tornar para mim um ser divino, de atitudes puras e admiráveis e embora meus olhos pudessem em algum momento vir a visualizar nela imperfeições de alma, imaginava que estes não conseguiam elevar—se ao meu íntimo, impossibilitando que eu sofresse pelo desamor...Mas destruí sua alma através de minha possessão...Antes de partir descobri que tentar se apossar de outra alma é o mesmo que tocar o sol com asas de Ícaro. Controlar seus desejos é algo mortal para o amor..."

Após ler a carta em voz alta para seu amigo, Emanuel comentou enquanto dobrava o papel da mesma forma que havia encontrado:

— Não sei porque minha esposa, Isabela, guarda isso. Também não sei quem escreveu tais palavras, mas certamente me identifiquei com a história. Sou um tanto ciumento. Não tenho como negar, tanto que achei esse texto fuçando em suas coisas pessoais.

Dionisio continuou a beber enquanto Emanuel se lamentava o enchendo de perguntas.

— Gostaria que me dissesse: Somos todos assim ou esse é um defeito meu? Quando avistamos um sol capaz de nos trazer luz e calor tentamos nos apossar dele para que ele sirva somente a nós? Não gosto de me imaginar um ladrão de sonhos ou de almas.

— Somente seu eu não diria, mas ciúmes tambem não é um defeito que exista em todos ao menos em niveis tão elevados.

— É sério que não sente ciúmes? Como isso é possível? — Perguntou Emanuel.

Ciúmes não fazem parte de meus defeitos porque sou um poeta, minhas armas são minhas palavras e palavras são armas muito frágeis para lidar com sentimentos. — Respondeu Dionísio enfatico. — Casei com meus pensamentos. São minha companhia nesse mundo. Nunca tive uma mulher para mim, mas talvez meu exemplo o inspire a encontrar respostas dentro de ti.

— Por que não se casou? Se eu o conheço bem não faltaram pretendentes.

— Eu não saberia domar uma alma feminina que é sempre tão inquieta, então por que prendê—la em meus pensamentos? — Não quero ter posse de um corpo. Quero ter posse de desejos, de doces pensamentos e amor. Prefiro ter uma alma viajando dentro do meu mundo do que possui—la. Os pensamentos de dois amantes são mais lindos quando se completam. Tocar uma alma com meu carinho é o melhor meio de faze—la ser um pedaço de mim. Tentar controlar seus pensamentos seria o mesmo que tirar a luz que aquecem sementes que sempre resultam em campos imensos de flores coloridas que sempre me surpreendem com novos aromas e vez ou outras também algumas ervas daninhas, que nem tanto mal me fazem. Me responda então. Pode um homem se apossar de uma alma se não a sua?

— Creio que não. — Respondeu Emanuel com a respiração lenta, enquanto corria os olhos pelas palavras da carta a relendo como se quisesse encontrar segredos nas entrelinhas.

— Regue uma alma com amor e colha seus frutos, mas da fonte dos frutos não se pode apossar! — Completou Dionísio.

— O que quer me dizer com isso?

— Você pode se deliciar de uma fruta, mas como poderia consumir a arvore, apossar de sua terra e sua agua e depois pedir novamente por seus frutos? Ela estaria morta. Em mim não poderá haver anseio algum de controlar os desejos de quem amo, porque quando sinto em seus beijos que faço parte deles, me sinto realizado. Amo ter os olhos de uma mulher fixos em mim, jamais poderia determinar a direção onde devem buscar a luz porque o prazer de vê-los me procurar é mais tocante. Sentir seu fôlego dentro de minha boca dá-me prazer maior do que a ver sufocada, por isso deixo que respire todo o ar do mundo...

— Acho que ainda tenho traços selvagens em minha alma. — Comentou Emanuel dobrando a carta para guardá-la no bolso. — Sou um homem das cavernas defendendo minha caça e tentando proteger minha fêmea. Sinto que não acompanhei a evolução da espécie. Também sou como Ícaro. Para alcançar um coração faço asas que se dissolvem com o tempo. Sou inocente quando lido com sentimentos. Não aprendi a alimentar o espírito de uma mulher com desejos e fazer seu fogo me aquecer e não aprendi que quando não posso mais alcançar seu coração é por que ela já se foi.

— Se concorda com o que digo, por que deixou-se possuir por esse mal e contaminou a quem amava? — Perguntou Dionísio

Apos alguns minutos de silencio em que Emanuel viajou por seus pensamentos e lembranças, desabafou:

— Talvez a origem de tudo tenha sido o relacionamento entre eu e minha mãe. Ela me controlava e tinha ciúmes de minhas amizades com mulheres. Cresci com ódio dos ciumes.

— Conseguiu encontrar uma boa utilização para o ódio ... — Riu Dionisio.

— Acha engraçado minha historia? — Perguntou Emanuel fechando a cara.

— Claro que não. É trágico. Pense comigo. Acharia sadio uma mãe ter ciúmes de seu filho a ponto de controlar sua alma, sendo que este é o relacionamento em que mais existe a possibilidade de amor?

— Mas nesse caso onde julgaria estar o erro? Pelo filho incapaz de vence-lo ou pela mãe incapaz de controla-lo?

— Doenças da alma podem atingir a qualquer ser, mas conhecer seus erros é o primeiro passo para corrigi-los.

— Que ótimo! Isso quer dizer que eu ainda posso me curar dessa doença na alma. — Comemorou Emanuel.

— Claro que não! Não percebe que agora é tarde demais para falar sobre isso? Devia ter pensado melhor antes de agir de tal maneira.

— Por que diz isso? Devo guardar essa carta onde a encontrei? — Questionou Emanuel.

— Não creio que exista essa necessidade. — Bravejou Dionísio irritado. — Ela provavelmente já se esqueceu disso. Quantas vezes Emanuel, terei que lembra-lo que essas cartas foram escritas por você? Parece não se lembrar de que está morto a mais de vinte anos! Agora voltemos a beber.

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