Mundo Novo

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O Detetive fecha os olhos e ainda consegue lembrar de cada detalhe do que viu naquele dia.

Ele entrou no quarto e teve que se controlar para não vomitar. O cheiro de carne pútrida dominava o ambiente e o cenário não era menos grotesco.

O homem estava nu, com parte de seu corpo ainda sobre a cama e seu tronco caído no chão. Um corte abria a garganta do infeliz moribundo.

O legista passa as informações que já conseguiu apurar da cena do crime: corte a faca de fio muito amolado. Sem sinais de luta. Pela disposição do sangue e organização das roupas, ele estava nu na hora do crime.

O detetive pensou na humilhação de ser assassinado pelado. Qualquer pessoa merecia uma morte mais digna.

O aviso de "FAVOR NÃO INCOMODAR" pendurado na porta havia mantido as camareiras afastadas do quarto. A reserva por tempo indeterminado e o cartão sem limites manteve a administração com olhos para outros hóspedes. Apenas o cheiro desagradável, que começara a incomodar os demais hóspedes, foi capaz de instigar suspeitas sobre o quarto 507 do Hotel Novo Mundo.

O detetive conseguia lembrar de cada cheiro, de cada forma deixada pela mancha de sangue no carpete mofado, da expressão de desespero eternizada no rosto do defunto.

Todos os detalhes foram analisados: o ângulo e profundidade do corte, a posição do corpo, a hora provável do crime, o histórico do homem, as pessoas com acesso à porta não arrombada do quarto, depoimentos de hóspedes e funcionários.

O quarto tinha uma infinidade de impressões digitais, cabelos e marcas da presença de outras pessoas além do morto, mas isso não era indicativo de nada, além da ineficiência das camareiras na limpeza do quarto de hotel. A arma do crime também não foi encontrada.

Um suspeito estava sendo investigado. Tinha motivação, tinha meios. A única coisa que a polícia não tinha era provas. O suspeito ia se esquivar e não havia nada que a justiça pudesse fazer.

O Detetive dá um suspiro desesperançado e passa a mão sobre o rosto em um movimento lento e sem propósito específico. Ele está decepcionado. Dá uma última olhada nas páginas do processo tentando ter um insight, alguma ideia que o pudesse ajudar a resolver o caso. Como das outras vezes, a ação não tem nenhum resultado. O Detetive fecha o processo e coloca a pasta junto aos demais arquivos de crimes não resolvidos.



Ser detetive de polícia é um trabalho exaustivo. Mesmo depois de sair do trabalho, o trabalho não sai da pessoa. Cada crime adiciona à memória mais um caso de horror.

O ser humano se adapta. Cada vez mais, as histórias tornam-se menos impactantes, cada bandido torna-se menos humano e cada morte torna-se um fardo mais leve. Mas, mesmo acostumado com a barbárie, há certos casos que ainda chocam, ainda abalam.

O detetive guarda vívidas na memória as imagens do último caso sem solução que investigou. Geralmente ele não pensa muito em casos antigos, já que tem tantos casos novos com que se preocupar. No entanto, esse caso tinha mexido com ele de formas que ele não conseguiria explicar, uma vez que nem ele mesmo entendia completamente as razões.

Ele não era o único a passar por esse tipo de situação. Seus colegas também reportavam casos dos quais tinham dificuldade de se esquecer, de deixar para lá.

- Mais um caso encerrado, Peres? – o colega do delegado o pergunta, tirando-o de seus pensamentos, enquanto senta em sua mesa com uma caneca cheia de café fumegante.

- Mais um criminoso no lugar onde deveria estar. – Peres responde, passando as mãos pelos cabelos.

Detetive Peres, Rogério Peres fecha o caso em suas mãos e o joga na pilha de processos finalizados.

Ele volta pra casa tarde da noite para mais uma madrugada solitária em seu pequeno apartamento velho e mal decorado. Pega uma cerveja na geladeira e se joga no sofá de qualquer jeito.

A exaustão tomava conta de cada fibra do seu corpo, depois de uma tarde inteira investigando um crime passional. O marido pegou a mulher com o amante na cama e jogou água fervente sobre o casal. Não houve muita dificuldade de atribuir os culpados, mas descobrir o paradeiro do marido deu mais trabalho do que o normal. Depois de muita procura o marido foi encontrado e preso.

Peres pensa que sua vida seria bem mais fácil se as pessoas não traíssem seus respectivos. "Malditos infiéis, só dão mais trabalho para a polícia", ele pensa dando mais um gole na cerveja gelada.

Um telefonema na madrugada o acorda de um sono torto no sofá. Geralmente ligações nesse horário significavam trabalho. Ele atende tentando não soar sonolento.

Lopes, seu colega da polícia, diz que o marido traído, que Peres ajudou a prender naquele dia, tinha contatos com o tráfico. Os amigos bandidos usaram seus contatos sujos dentro da polícia para descobrir o nome de Peres. Agora o detetive corria risco.

Lopes solicitou que Peres fizesse as malas. Uma viatura o pegaria em sua casa em alguns minutos. Peres precisaria ficar protegido até que os bandidos fossem presos.

A muito contragosto, o detetive atende à requisição do colega de trabalho. No dia seguinte falaria com seu superior e pediria o fim da medida de proteção. Ele estava armado e sabia se defender. Não poderia sair correndo para se esconder cada vez que um bandido o ameaçasse. Mas naquela noite não havia nada mais a fazer do que passar a noite entocado em algum lugar qualquer.

É o próprio Lopes que vai buscar Peres em uma viatura. O detetive entra no carro e balbucia reclamações sobre ser acordado de madrugada e sobre não ter medo de bandido. Lopes não liga para o seu mal humor e faz gracejos durante todo o trajeto sobre os mais diversos assuntos.

Chegam à porta do hotel e fazem o check-in para o detetive usando um pseudônimo. Lopes leva o colega até seu quarto e afirma que a viatura ficaria na frente do hotel toda a noite. Peres promete ligar para o colega a qualquer suspeita.

Finalmente sozinho, e ainda completamente exausto, Peres toma um banho morno para relaxar. Deita-se sobre a cama e mal tem tempo de pegar no sono quando ouve batidas à porta.

- Lopes, eu vou quebrar sua cara! – ele reclama enquanto abre a porta.

Não era Peres. Um homem musculoso entra no quarto forçando a passagem. Peres corre em direção a cadeira para pegar sua arma. O invasor é mais rápido e o imobiliza com um movimento habilidoso.

Antes que Peres possa sequer reagir, sente o frio da lâmina tocar o lado esquerdo de seu pescoço. Ainda se debatendo por ar, Peres cai sobre a cama e parte do seu corpo escorrega até o chão.

Ali, no quarto 507 do hotel Novo Mundo, às 02:47 da madrugada, detetive Rogério Peres morre sufocado no próprio sangue.

Dias depois, quando seu corpo sem vida começa a se putrefazer, os hóspedes do hotel reclamam e finalmente encontram seu cadáver.

Seu substituto, o detetive Marcos Lopes, não consegue solucionar o caso. Lopes ficará pelo resto da vida remoendo o caso, tentando descobrir o detalhe que deixou passar, mas por mais que tente, jamais encontrará a prova para prender nenhum dos amigos traficantes do marido traído que matou a mulher e o amante.

O marido saiu da cadeia em quatro anos, por bom comportamento. Peres recebeu pena de morte, por fazer o seu trabalho.

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