Passe para seus contatos

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Tudo começou muito rápido. Ele estava na porta de casa, voltando do supermercado quando um homem apontou o dedo em sua direção e com um simples grito de "é ele!" iniciou a confusão. Foi cercado por um grupo de pessoas desconhecidas que proferiam ofensas em sua direção e o acusavam de algo. Sua esposa, que ainda estava no carro, também era atacada. Ele sentiu uma agonia profunda ao vê-la aos prantos, mas não conseguia se aproximar do veículo para protegê-la.

Uma pequena multidão começou a se formar em volta deles. Cada vez mais pessoas se uniam ao grupo de justiceiros. Ele era empurrado, tinha dedos apontados em seu rosto, sentiu algumas cusparadas. Enquanto isso, outros quebravam o vidro do carro do casal para tirar a esposa de seu abrigo.

Ele tinha uma sensação forte de claustrofobia, uma vez que o aglomerado de pessoas só ficava mais e mais apertado em torno dele. O homem se sentia encurralado e nunca se sentira tão impotente. Suas débeis tentativas de fugir não tinham a menor eficiência, já que ao se esgueirar por uma brecha se deparava com mais uma massa de pessoas.

Ele não conseguia identificar muito bem as frases proferidas, pois eram todas faladas ao mesmo tempo, aos berros. Ele escutava coisas como "vai apodrecer na cadeia", "devia estar morto", "justiça nas mãos do povo", e xingamentos como bandido, safado e pervertido.

O bando se tornava mais e mais violento. Além dos empurrões o homem recebia chutes e socos de várias direções, ao ponto de não saber quem os havia dado. Não desistiu de fugir. Tentava a todo custo empurrar, correr, escapulir, esgueirar-se, proteger-se, mas ele era só um em meio ao povaréu.

Sentiu uma dor aguda na cabeça e sua face esquerda encheu-se de um líquido viscoso e quente. Sua visão ficou turva. Passou as mãos sobre o rosto e descobriu que era seu próprio sangue que jorrava de sua testa. Conseguiu ver uma pedra cair no chão. Pela primeira vez temeu pela sua vida e começou a gritar, externando todo desespero que havia dentro de si.

- Por quê? Por quê? POR QUÊ? POR QUÊ?

Era tudo o que conseguia perguntar. Continuou repetindo inúmeras vezes, misturando suas lágrimas ao sangue que ainda escorria. Tentava a todo custo não cair, para não levar chutes na cabeça. Ele tinha consciência de que deveria se manter acordado se quisesse sobreviver ao ataque.

Já não conseguia avistar sua esposa. Teve a impressão de ouvi-la gritar, mas já não tinha a menor noção de espaço. Não sabia mais pra que lado estava o carro ou sua casa. Só conseguia ver o mar de gente a sua volta. Fechou os olhos e rezou. Pediu que seu fim não fosse aquele, de ser esmagado e humilhado, sem nem saber o motivo.

Pode ter se passado uma vida, ou um minuto, ele não saberia dizer, mas depois de muito sofrer, sentiu um toque diferente. Não era um contato brusco ou agressivo. Era uma mão amiga que segurava seu antebraço direito e o puxava. Ele se deixou levar. Não tinha mais forças para resistir.

Entrou em um lugar, seus olhos mesmo confusos e sem foco conseguiram identificar que era uma padaria. Foi levado para uma sala e a porta atrás de si foi fechada e trancada. Mesmo assim ele não se sentia seguro.

Finalmente livre do alvoroço, identificou seu salvador. Foi o segurança da padaria do seu Pepe, a quem o homem sempre cumprimentava quando passava na frente do local. Perguntou de sua mulher, mas ninguém soube lhe informar.

Deram-lhe água, limparam-lhe as feridas, fizeram uma compressa de gelo para sua testa. Já mais calmo, resolveu buscar respostas para suas muitas dúvidas.

- O que acabou de acontecer?

- Tão dizendo por aí que você molestou uma menininha. – o segurança, que havia se apresentado anteriormente como Antonio, respondeu.

- EU? Eu nunca faria uma monstruosidade dessas! – ele fica ultrajado, revoltado, enojado.

- Eu acho que o senhor é um homem bom. – Antonio sacodia a cabeça afirmativamente – Por isso te ajudei. Se o senhor fica mais um pouco ali, ia ser linchado.

- Achei mesmo que ia morrer. Mas da onde tiraram essa ideia maluca? Por que eu?

- Ta rolando uma foto sua no Whatsapp. – Antonio estende o celular na direção dele.

Realmente uma foto sua, em seu carro, vinha acompanhada de um texto que informava que ele tinha abusado de uma menina de cinco anos. Completamente atordoado, ele vomitou.

- Não! Eu não fiz nada disso. Eu juro!

Seu Pepe ligou para a polícia. Os entocados não faziam a menor ideia, mas o número de indignados à porta da padaria chegava a casa dos milhares. A polícia não demorou a chegar. O homem teve que ser escoltado para o carro de polícia para não ser puxado novamente para o tumulto.

Pela extensão dos ferimentos, foi levado direto para uma unidade de saúde para tratar de seus machucados. Levou três pontos na cabeça, tinha hematomas por todo o corpo. Teve fotos tiradas de tudo. Ele fez questão de que tudo fosse registrado, porque ia ajudá-lo nos processos futuros.

Já na delegacia, descobriu que sua esposa estava bem e que já havia prestado depoimento. Ela conseguira correr para se esconder na casa de um dos vizinhos e também chamou a polícia. Estava com escoriações no rosto, braços e pernas. Apenas uma pessoa foi presa em flagrante, pixando a casa onde o casal morava.

A polícia apurou que a confusão durou cerca de quinze minutos, antes do homem ser resgatado por Antonio. Como havia passado apenas quinze minutos, ele nunca ia entender, já que para ele aquela tortura parecia ter durado uma eternidade.

Conseguiu comprovar aos oficiais que estava em viagem para Fortaleza na data do suposto estupro. Era inocente, como sempre soube.

Voltou para casa com escolta policial, apenas para buscar umas roupas e alguns documentos. Não se sentia seguro para dormir na casa em cuja porta foi agredido por uma multidão. Sentia vergonha, sentia-se humilhado e sentia raiva.

À noite, viu a si mesmo no noticiário. "Uma notícia falsa quase termina em tragédia". Viu depoimentos de um homem dizendo em rede nacional que "não sabia porque estava batendo, mas ele com certeza sabe por que ta apanhando". Não, naquela hora ele não fazia a menor ideia de por que ele estava sendo atacado. Viu que a população descobriu que havia sido um terrível incidente e agora depositavam flores na frente de sua casa. Pensou que incidente é torcer o pé ao pisar em um buraco e não quase ser linchado por uma notícia sem nenhuma credibilidade.

Não dormiu naquela noite, devido às dores. Os traumas externos latejavam e ardiam, mas o trauma interior era a dor mais forte e essa não poderia ser curada com ataduras. Essa dor ia demorar a passar, se é que um dia passaria.

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