Mamãe e papai se casaram quando tinham vinte e duas primaveras e eu nasci alguns verões depois. Sou Edeline Sylvie Korhonen, disforme, filha de disformes, a primogênita da família e irmã mais velha dos dois feiosos mais horrendos da região, Heikki e Carian.
Como sempre, minha mãe acordou bem cedo e correu para me sujar. Depois de esfregar bastante fuligem no meu rosto e despentear meu cabelo ela foi preparar algo para comermos antes de mais um dia cansativo. Quando senti o cheiro do café aguado e das torradas carbonizadas desci a escada de mão improvisada feita por papai e me sentei numa das cadeiras da mesa da cozinha. Ela colocou as cinco canecas de metal que tínhamos em casa na mesa e despejou um pouco de café em cada uma delas. Tomei uma nas mãos e observei o líquido que ela continha. Tinha uma cor estranha e parecia água suja. Prendi a respiração e engoli aquela bebida, que deixou um rastro de amargura na minha garganta.
Papai desceu e deu um beijo na testa de minha mãe. Ela sorriu e indicou uma das cadeiras para que ele se sentasse junto a mim. Papai puxou a cadeira e se acomodou ao meu lado.
— Bom dia, minha feiosinha. — disse ele alegremente.
— Bom dia, papai. — respondi sorrindo para ele.
Meus dois irmãos desceram a escada e correram em volta da mesa. Mamãe se assustou e quase derrubou as torradas no chão. Papai estendeu os braços e agarrou os dois bem na hora em que passaram por ele. Os pestinhas se debateram, mas papai era forte o suficiente para carregar dois tambores de leite transbordando. Ele os colocou no colo, um em cada perna e entregou-lhes suas canecas. Papai não era muito de brigar, mamãe também não. Olhei para cada um deles e fiquei grata por ter nascido nessa família, mesmo ela sendo de disformes.
Mamãe é de uma antiga linhagem de disformes, os Sylvie, uma das mais velhas famílias disformes já relatadas nos registros de memória. Os registros de memória são documentos e pastas onde estão registradas todas — ou quase todas — as famílias, tanto disformes quanto apolíneos. Claro, apolíneos são registrados separadamente dos disformes. Papai sempre me conta que seus ancestrais disformes achavam desnecessário o uso de sobrenomes, afinal já eram miseráveis apenas por terem nascido feios, por isso ele mesmo escolheu seu sobrenome: Korhonen. Os registros de memória sobre os disformes eram terrivelmente desorganizados, por isso muitos de nós não foram registrados. Não existiam números oficiais dizendo o tamanho da população disforme no mundo, mas acreditava-se que era bem grande.
Peguei minha torrada e mastiguei bastante. Apesar de seu gosto não ser dos mais agradáveis, isso era necessário caso contrário eu poderia engasgar com um alimento tão seco. Aprendi isso da pior forma. Papai se levantou e colocou suas botas para trabalhar, o único par de sapatos que tinha, e ajeitou o cinto na cintura. Despediu-se de todos nós e saiu. Ele trabalhava até o sol se pôr, entregando galões de leite, caixas pesadas, encomendas e tudo que se possa imaginar.
— O que vocês acham que o papai vai entregar hoje? — perguntou Heikki.
Ele era o filho do meio e tinha os olhos castanhos iguais aos do papai, o cabelo sempre bagunçado e o nariz era visivelmente torto. Se ele fosse de família apolínea, depois de completar o último estágio de crescimento teria seu nariz reconstruído numa daquelas cirurgias caras para deixar as pessoas num nível harmônico aceitável, para ser considerado apolíneo de classe dois. Havia uma hierarquia entre os apolíneos: os classe um, os classe dois e os classe três. Apolíneos de classe um eram os nascidos harmônicos em famílias apolíneas, ou seja, já nascem bonitos. Consideravelmente raros, os que possuíam mais que oitenta por cento de harmonia. Apolíneos de classe dois eram os nascidos em famílias apolíneas que passavam por procedimentos estéticos, cirurgias plásticas e outros tratamentos para se tornarem harmoniosos. E por fim, os apolíneos de classe três seriam os disformes que de alguma forma conseguiram juntar belos de ouro suficientes para pagar cirurgiões e se tornarem harmoniosos. Nunca se ouviu falar de alguém que tenha feito tal coisa. Não existiam apolíneos classe três, mas ainda assim era uma possibilidade, ainda que a beira do impossível.
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A Disforme - O legado da Ira [DEGUSTAÇÃO]
Fiksi Umum(LIVRO I) Depois da Guerra do Extermínio, a mais sangrenta e longa guerra de todos os tempos, os apolíneos se fortaleceram e tomaram o poder pelo mundo todo. A sociedade desde então ficou dividida em dois grupos: os belos e os feios. Apolíneos e dis...