Poluição de gatos

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Ainda estava escuro, quando um carro preto estacionou em frente à porta do colégio interno, São Bartolomeu. A chuva castigava, incessantemente, as casas do outro lado da rua, dando um tom ainda mais macabro a esse dia. Olhei para trás e vi alguns dos meus amigos, poucos estavam lá, talvez os que fossem, realmente, verdadeiros. Abracei meus colegas, com a certeza de que era a última vez que eu os via.

Meu irmão, Michael, já havia entrado no carro. Desde que soubemos da morte de nossos pais, ele tentava não demonstrar seu sofrimento e sempre desviava o rosto, para que não o visse chorando. Corri para o carro, sem me preocupar que a chuva ensopasse minha roupa. Entrei, Michael olhava a chuva pela janela, não querendo que eu visse a expressão dolorosa em seus olhos.

O carro começou a andar e, em pouco tempo, o colégio já tinha sumido por trás da forte chuva.

­­- Vai dar tudo certo, Jimmy – Michael me abraçou, tentando me consolar – nós vamos começar uma vida nova. Tenho certeza que vamos conseguir ser felizes. – sua voz era fraca, eu ainda podia ouvir seus soluços.

Enquanto o carro deslizava por entre as ruas escuras, a chuva caía forte no teto do carro, e o vento uivava, feito fantasmas ameaçadores. Minha mente estava tão confusa e tenebrosa, quanto a tempestade que víamos pela janela. Sem querer, comecei a recapitular as últimas coisas que aconteceram e que, com certeza, iriam mudar a minha vida para sempre.

Lembrei quando a diretora do colégio nos chamou. Algo sobre nossos pais, nos disseram. Michael abrira um sorriso para mim, ele sempre acreditara que nossos pais nos levariam com eles. Ele sempre dizia, esperançoso: - Um dia eles voltarão, e seremos uma família unida e feliz, como as outras.

Eu nunca soube, assim como meu irmão, o motivo de nossos pais terem nos deixado num colégio interno. Eles nunca nos visitavam, apenas pagavam o colégio a cada ano. Talvez, Michael e eu tenhamos "nascido por acidente" e eles, que não queriam filhos, decidiram nos abandonar. Não gosto de pensar nessa teoria, prefiro acreditar, que se comportavam de tal forma, para o nosso bem. Entretanto, não conseguia entender o motivo deles nunca terem nos visitado.

A voz da diretora ao nos contar que eles haviam morrido, na noite anterior, em um ônibus que pegou fogo, provavelmente, um ataque de terroristas, ainda me perturbava. Não chegamos a ir ao funeral, simbólico, uma vez que seus corpos foram carbonizados. Tão pouco, procuramos informações na mídia, seria doloroso demais conhecer nossos pais por meio de uma tragédia estampada nos jornais. Michael não queria que a imagem do funeral preenchesse nossa mente toda vez que lembrássemos, ainda com dificuldade, deles.

Uma semana depois, o juizado inglês havia decidido que nós ficaríamos com a nossa avó, a Sra. Carmem, em um povoado da Inglaterra, chamado Riverplace. Eu gostava de Londres, com seus parques e edifícios, que sempre me encantavam nos passeios escolares, gostava daquela vida agitada, que saltava nas janelas do internato. Não sabia o que me aguardava em Riverplace, mas tinha certeza que muita coisa iria mudar. Para pior, talvez... não ando muito otimista.

- Ainda os veremos, Michael. Tenho certeza que eles nos amavam.

- Sim. – ele acariciava meu pescoço com sua mão - prometo que vou cuidar de você.

Michael sempre fora mais que um irmão mais velho. Ainda que a nossa diferença de idade fosse de apenas um ano, eu via naquele rapaz, sempre preocupado comigo, um verdadeiro pai de 16 anos. Ele não deixava que nada de mal acontecesse comigo ou que eu ficasse triste, estava sempre me contando piadas, me distraindo.

- Não quero que fiquemos longe um do outro – minha voz saiu trêmula – mesmo quando formos adultos.

O medo, finalmente, começava a mostrar a sua face, me fazendo ficar inquieto. Senti o meu corpo começar a tremer e as lágrimas voltarem a escorrer pelo meu rosto. O carro cortando a tempestade, era uma verdadeira metáfora de nossas vidas naquele momento – atravessando um turbilhão de emoções e caos, sem um destino aparente.

Jimmy Stuart e O Livro dos Anos (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora