UM

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            Era uma noite quente de verão em São Paulo; o asfalto ainda irradiava a ardência desagradável daquele início de ano que abraçava o antigo prédio do sanatório, uma construção antiga e afastada do edifício principal do Conjunto Hospitalar do Mandaqui. Aquele edifício antigo havia sido reformado em meu último ano de residência, por um interesse político qualquer cuja lógica nunca me fora possível compreender. Eu havia me especializado naquele hospital havia anos já, e sempre sentia saudades da velha enfermaria, que ocupava antes metade do segundo andar, imediatamente acima do Pronto Socorro. Parei diante do prédio principal, inundando meus sentidos com os sons e cheiros carregados de nostalgia do meu tempo de recém-formado, e do ingresso na velha ala psiquiátrica, temeroso dos desafios que iria encarar. 

          Ao me aproximar da entrada, um porteiro baixo e magricelo trajando um uniforme que fazia com que parecesse mais um inspetor de alunos de uma escola primária me abordou com um ar sério, informando que o horário de visitas havia se encerrado horas antes. Esbocei um sorriso tentando ser simpático, mas o mormaço da noite tinha a capacidade de me deixar irritado, e por trás da falsa simpatia, esbravejei contra a incapacidade do infeliz de perceber quem eu era. O imenso crachá branco em meu peito, com minha foto três por quatro, identificava claramente: "Dr. Júlio - Psiquiatra" logo abaixo de um grande "FUNCIONÁRIO"; mas eu já deveria saber que era óbvio que ele não prestaria atenção aos detalhes. Lembrei-me de meu velho chefe de residência enquanto estendia-lhe a identificação plastificada. O velho Loester dizia que o povo brasileiro foi condicionado a não observar e concluir, e que essa era a causa de haver tão poucos cientistas brasileiros de renome.

          Após o porteiro me deixar entrar, pedindo mil desculpas de modo automático e pouco convincente, caminhei lentamente pela recepção ampla, em direção à técnica de enfermagem que deveria estar fazendo a evolução da troca de turno, e me apresentei como o novo plantonista da noite. Sem levantar o rosto, apenas me observando por cima da armação de seus óculos espessos, a funcionária solicitou de modo seco que eu aguardasse, pois iria chamar a enfermeira responsável do turno; levantou-se de má vontade, e fechou um grosso romance policial que estava lendo - eu viria a descobrir pouco tempo depois que a evolução de enfermagem só era feita após o jantar dos funcionários, às oito da noite. Antes de sair, a funcionária me advertiu para vestir um jaleco, pois eram ordens da administração; à contra-gosto, atendi à regra da casa - o que paradoxalmente contrariava o que havia aprendido ali mesmo, quase duas décadas antes: psiquiatras deveriam evitar o tradicional branco dos médicos, pois traria aos pacientes uma má impressão e ares de insegurança, dificultando o estabelecimento de vínculos com os doentes mentais e gerando uma grande resistência ao tratamento.

          Estava absorto em meus pensamentos quando uma velha voz conhecida me recebe com uma euforia que há muito eu não sentia:

          _ Doutor Júlio, há quanto tempo! Que saudades!

          Maria Antônia, uma mulher incrível, enfermeira especializada em Saúde Mental, já trabalhava no Mandaqui quando eu era residente. Detentora de um carisma e um conhecimento exemplares, cheguei muitas vezes a aprender mais com ela do que com alguns preceptores.

          _ Toninha! Que surpresa! Depois de tanto tempo, achei que já tivesse se aposentado!

          _ Esse esqueleto velho aqui ainda aguenta mais alguns anos, doutor. E você bem sabe que eu morro o dia em que eu parar de trabalhar.

          _ Então se prepara, porque vamos voltar a trabalhar juntos. Vou te encher a paciência como nos velhos tempos!

          Toninha me encarou com um sorriso de soslaio, misto de alegria e angústia. Eu ainda me lembrava daquele rosto: significava que algo não estava direito.

Paciente 302Onde histórias criam vida. Descubra agora