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          Mal esperei as luzes das lanternas do carro do diretor serem devoradas pela chuva de verão para retornar à sala de medicação. Estava determinado a ler aquele prontuário não importava o custo. Iniciei a rotina da enfermaria - eu tinha pressa; queria acabar com as evoluções do turno e as conferências de prescrições o quanto antes, para esperar a madrugada modorrenta, quando cada membro da equipe se recolheria a miudezas mundanas, e não repararia na minha ausência por pelo menos meia hora.

          Eu praticamente tinha abstraído de minha mente a bronca levada pelo diretor; minha ansiedade era tamanha que não me deixaria abater por nada; no entanto, os gritos do Doutor Saldanha foram tão altos, e reverberaram tão intensamente por toda a enfermaria, que alguns pacientes bipolares em surto maníaco começaram a me provocar, como crianças de uma maldita pré-escola. Embora minha formação acadêmica ditasse para que eu os ignorasse - afinal, além de serem doentes mentais, não se é possível argumentar com pacientes na fase eufórica de seu transtorno de humor (eles sempre se sentirão superiores, não importa o argumento usado) - suas provocações irracionais conseguiram atingir algum terminal em meu orgulho ferido. Isso, aliado ao calor abafado daquela noite chuvosa do verão paulistano, conseguiu gerar em mim uma raiva cada vez mais difícil de conter. Um desejo maléfico e anti-ético crescia em meu âmago: a vontade de contê-los e dopar esses pacientes por pura maldade. Vendo minha crescente irritação, Toninha gentilmente tocou em meu ombro.

          _ Venha, Doutor. Vamos tomar um café. Daqui a pouco as medicações fazem efeito, e esse povo acalma.

          A enfermeira-chefe tinha uma candura na voz; parecia uma doce avó consolando seu neto. E, ao mesmo tempo em que conseguia me puxar de volta para a razão, emitia um olhar sério de reprovação para os pacientes - o que pareceu reduzir a excitação de alguns deles.

          _ Calma, Júlio - disse a enfermeira ao entrarmos na sala de medicação - Eles são doentes; eles vão falar besteira e te provocar.

          _ Eu sei disso - respondi, colocando minhas mãos em minhas têmporas enquanto me sentava em um banco próximo, massageando a pele em movimentos circulares, tentando aliviar a tensão - O problema não são os pacientes, mas o Saldanha não tinha o maldito direito de gritar comigo!

          Toninha deu de ombros.

          _ Você não tinha nada que falar no 302 - e antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ela me interrompeu - nós ouvimos os gritos daqui. Ouvimos muito bem quando ele gritou pra ficar longe do 302. Eu tinha te avisado.

          A velha enfermeira me estendeu uma xícara de café preto bem forte, a qual peguei sem muito entusiasmo. Sorvi um primeiro gole, e um forte amargor corroeu minha garganta.

          _ Desculpe, Júlio, está sem açúcar.

          Cláudia, que entrava na sala naquele momento, não conseguiu conter o riso ao ver a careta involuntária que fiz ao engolir o café amargo. Aquilo quebrou a minha irritação, e eu e Toninha começamos a rir também.  Ao menos um pouco de alívio em meio àquele plantão que começara tão desagradável.

          Retornamos à rotina da enfermaria. A ansiedade retomou meu espírito; agora era esperar as medicações da noite surtirem efeito e deixar os pacientes dormindo, me esgueirar sorrateiramente até a sala do Saldanha, procurar o prontuário. "De hoje não passa" - pensei, com um brilho ambicioso no olhar.


          Ah, às vezes me esqueço como as coisas funcionam em plantões, ainda mais em saúde mental. Quanto mais desejamos um plantão tranquilo, mais o diabo o torna uma filial do inferno na Terra. Duas pacientes no 204 resolveram brigar, acusando uma à outra de "roubarem seus pensamentos"; um dos bipolares do 103 resolveu esconder um maço de cigarros na caixa d'água do vaso sanitário, e ao ver seu "produto de tráfico" encharcado, tentou a todo custo destruir a privada do quarto. E para coroar o plantão, o "Exorcista" do 301 conseguiu se soltar das amarras e golpeou a pesada porta de metal do isolamento com a cabeça, tentado romper o vidro blindado da escotilha. Eu e Clóvis levamos quase uma hora para contê-lo novamente, e mais quarenta minutos para suturar o amplo corte em sua testa - além dele não deixar ser anestesiado, a quantia exagerada de sangue dificultava ainda mais o trabalho de aplicar-lhe os pontos necessários.

Paciente 302Onde histórias criam vida. Descubra agora