Acomodei-me na cama em frente àquela em que Lúcio estava sentado; e, assim como o paciente, recostei-me na parede, tomando cuidado para não estragar os traços rubros que simulavam os cabelos escritos daquele imenso mural. O paciente ergueu seu olhar em direção a mim, fitando-me bem no fundo de meus olhos; suas pupilas pouco dilataram em meio à baixa luminosidade provinda da parte externa do prédio, porém suas íris azuladas pareciam artificialmente reluzentes em meio às sombras do cômodo, causando-me um certo desconforto. De alguma forma, eu podia sentir que esquadrinhava minha alma, assim como eu tentava fazer com ele.
_ Eu gostaria de começar como muitas histórias antigas - começou o jovem, sem emoções em sua voz - "Eu nasci... cresci...". Mas, sendo sincero, não consigo me lembrar de quando nasci ou cresci... Parece que existo desde o início, e existirei após o fim.
_ Alguns pacientes tem essa sensação - intervi - Chama-se "delírio nihilista". Alguns doentes creem estar mortos e acreditam estar amaldiçoados.
_ Mas esses pacientes creem estar MORTOS, certo? - havia um profundo pesar em sua voz - Eu estou VIVO, no entanto.
"É melhor apenas ouvi-lo" - pensei - "Pelo visto esse conhece um pouco de psicopatologia. Se eu intervir como geralmente faço, poderei lhe dar munição para me manipular."
_ Desculpe-me por isso - disse-lhe, num tom consolador - Prometo que não vou interrompê-lo novamente.
_ Como eu ia dizendo, Doutor - ele prosseguiu como se nem mesmo se importasse se estava ou não sendo ouvido - Eu simplesmente apenas me lembro de "viver". Acordava mecanicamente todas as manhãs, tomava uma xícara de café e ia até meu cubículo de trabalho num escritório de contabilidade no prédio em frente do meu. Uma vida medíocre, corriqueira, sem emoções. Patética. Repetitiva. Insuportavelmente monótona. Por anos vivi nessa rotina robótica, sem perspectivas, sem anseios... sem sonhos.
"Quantos anos esse rapaz tem?" - indaguei-me - "Mal parece saído dos vinte... Partindo do princípio que o Mandaqui não interna menores de idade, e que está internado aqui há três anos, deve ter o quê - 22, 23 anos? Como poderia trabalhar 'anos' assim? Pensamento hiperbólico? Mas aí seria um bipolar em mania, e ele está mais para depressivo... Um histérico? Melhor dar-lhe mais corda..."
_ Depois de muito tempo naquela rotina - continuou o paciente, após um pesado suspiro - comecei a perceber que a vida não tinha sentido. Quase trinta anos e eu não vivia. Eu sobrevivia. Um dia após o outro, sem nenhum sentido. Eu tinha perdido o prazer nas coisas que gostava: ler havia ficado enfadonho; os filmes do cinema ficaram maçantes; e a música... ah, a música... poucas músicas ainda me entretinham. Eu senti que a música vinha - e ainda vem - se deteriorando... Sabe, doutor, música é algo que não se ouve... é algo que se sente.
Enquanto ele falava, senti a necessidade de anotar aquela conversa, iniciar o meu prontuário do paciente 302. Tateei os bolsos do jaleco procurando meu bloco de rascunho e uma caneta, e assim que pude comecei a tomar notas. Interessante o fato de ele ser mais velho do que aparentava em quase uma década; embora tivesse uma aparência jovem, a única coisa que se destacava naquele rapaz eram os olhos azuis; de resto era apenas um jovem como outro qualquer, de traços comuns, aparência mediana. Mas sua voz, embora na maior parte do tempo em que falava, parecia algo artificial, sem emoções, em certos momentos deixava transparecer uma angústia, uma sensação estranha de... finitude.
_ Eu sentia minha existência vazia - ele continuou, não se importando em permitir-me tempo de anotar sua história - Minha alma parecia ser arrancada de mim gradativamente. Até o dia em que ela apareceu.
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Paciente 302
General FictionUm psiquiatra retorna ao hospital em que se especializou vários anos antes, e se depara com um paciente único, com privilégios inexplicáveis; vários médicos desistiram da carreira ao atender o estranho doente, e até mesmo a residência em psiquiatri...