O velho sorriu quando percebeu que eu fiquei um pouco menos assustado, mas não parece ter percebido que eu ainda achava toda aquela situação estranhíssima, pois disse:
— Muito bem então, já que tudo está pronto, vamos!
Fiquei atordoado, e questionei:
— Para onde?
Ele olhou pra mim como se eu fosse um idiota, e respondeu:
—Para o reino, é claro! Mas eu não posso ir com você, vá sem mim, e não conte a ninguém que me encontrou. As pessoas provavelmente o achariam louco.
Tive vontade de dizer que provavelmente me achariam mais louco ainda se eu os contasse que um velho doido me foiceou no peito e depois me ressuscitou, mas nada disse, pois minha cabeça ainda estava lotada de dúvidas e eu queria sanar todas naquele momento, com certeza não deixaria aquele louco me levar para onde quisesse sem ao menos me dizer o que estava acontecendo:
—Eu não vou a lugar algum com você antes que me responda algumas perguntas!
Ele revirou os olhos.
— Você me prometeu a sua vida, em troca do fim da sua dor. Deseja que eu volte atrás na minha parte do acordo?
Estremeci. Então seria assim, não é? Eu estava preso a esse louco pelo resto da minha vida, a única coisa que poderia desejar é que ele não me torturasse. Sabem, odeio torturas matinais antes de tomar um bom café da manhã, isso acaba com meu dia.
Ele então disse com uma voz autoritária:
— Tudo certo, vá!
Não tive tempo de me lembrar para onde, quando me vi sendo arrastado por uma ventania para dentro de uma espécie de corredor de nuvens, largo o suficiente para caber um elefante, e comprido o suficiente para caber seis arranhas-céu e uma girafa. isso mesmo, uma girafa!
E então, tão de repente quanto começou, tudo acabou, e eu me vi estatelado em um piso de mármore muito bonito. Olhei pra cima, era um lugar lindo: campos verdes cheios de animais de todas as espécies, árvores cheias de frutos em todos os lugares, e um conjunto de abóbadas brancas a um canto. Tudo tinha um ar muito calmo, como se a própria mãe natureza estivesse ali presente, acalmando cada animal e fazendo com que cada árvore desse tantos frutos quanto fosse possível.
E então eu os vi.
Pessoas que pareciam pessoas, mas tinham asas. E então eu me lembrei, eu também tinha asas! Com o choque de ser transportado para esse lugar, eu havia esquecido disso! Estava um pouco atônito e pensativo quando um homem que parecia ter uns 40 anos falou comigo:
— Seja bem vindo, novato! Espero sinceramente que sua morte tenha sido prazerosa!
Olhei para o homem de esguelha, por um momento ele me pareceu outro louco, mas tinha um ar paternal que transpassava confiança, pois se vestia como um velho professor de história: casaco de tweed, barba grisalha, calças quadriculadas e óculos que pareciam que poderiam cair a qualquer momento. A única coisa que estragava o visual de pai-professor eram suas longas asas, que pareciam gastas, meio amareladas. Tentando ignorar isso, perguntei:
— Ei, quem é o senhor?
Ele riu:
—Senhor? Não sou o senhor, não vejo ele há um bom tempo.. Eu sou um arcanjo, meu nome é Gabriel! Acho que está um pouco perdido, certo? Pois vou lhe explicar: você virou um anjo!
Eu queria discordar, queria imaginar que era mentira.. Mas as asas nas minhas costas não abriam espaço para questionamentos, engoli em seco, e perguntei:
— Mas.. Como eu posso ser um anjo? Eu não fui tão bonzinho assim? Por que logo eu fui escolhido?
Ele então riu estrondosamente, uma risada que estranhamente era contagiante. Tive vontade de rir também, mas me lembrei que a minha situação não era nada engraçada, então me contive. Ele então parou de rir, e disse:
- Acho que você está se dando um pouco de valor demais, mas não se incomode, isso não é ruim! Só que todas as crianças humanas que morrem viram anjos, isso não é uma dádiva especial sua.
As palavras dele me bateram como um chicote em brasa. Morto? Eu estava morto? Mas como poderia, o velho me ressuscitou.. Mas se eu estava realmente morto, isso significa que eu nunca mais poderia ver a minha mãe?
— É possível ver pessoas que ainda não morreram?
A expressão feliz dele se desfez, me olhou com uma expressão meio melancólica e meio penalizada.
— Bom, possível é, mas..
Algo na expressão dele não me agradou, parecia que era possível ver pessoas ainda não mortas, mas pela melancolia que vi em seu rosto, o preço era alto. Decidi que valeria a pena, pela minha mãe.
— Me leve lá —Eu disse.
— Tudo bem, mas não me culpe por.. Hum.. Frustrações. —Ele respondeu. Novamente, a expressão dele não me agradou.
E então partimos. Se não fosse o nervosismo que eu estava sentindo por imaginar que tipo de preço eu pagaria por ver uma pessoa viva, eu teria aproveitado a viagem nas costas do Gabriel. Como eu não sabia usar minhas asas ainda, ele me carregou: e voar era uma sensação incrivelmente libertadora, como se nenhuma tristeza pudesse ser rápida o suficiente para alcançar as suas asas.
Após um tempo de viagem (que achei longo demais, considerando o quão foi rápido da primeira vez), chegamos até a varanda da minha casa. Parei pra respirar, provavelmente minha mãe estava extremamente aflita, afinal, provavelmente eu passei quase 1 dia inteiro fora sem dar explicações.
Olhei pela janela, com Gabriel no meu encalço, e vi minha mãe debruçada sobre algo: ela parecia triste. Não, triste não é palavra suficiente para definir aquela expressão.. Parecia totalmente destruída por dentro.
Aquela visão me causou uma dor extrema no coração, minha mãe estava daquele jeito por minha causa! Ela provavelmente achava que eu estava perdido, machucado ou algo assim. Então entrei correndo, para dizê-la que eu estava bem, que não precisava mais chorar, entrei já pulando para um enorme abraço de urso.
Mas eu a atravessei direto.
Eu precisei de um tempo para digerir a situação. Eu não consegui abraçar minha mãe, por quê?! Ela estava ali, parada, eu pulei nela em um abraço, por que eu não podia tocá-la? Tentei várias vezes abraçá-la, tocar em seu braço, sua cabeça, seus olhos, mas nada adiantava, minhas mãos sempre atravessavam.
De repente vi no que ela estava debruçada: era o meu corpo morto. É isso, minha mãe achava que eu estava morto.
Gabriel então me deu um olhar lacrimoso, e disse:
— É como eu disse, você está morto.. Nenhuma pessoa viva pode lhe ver ou lhe tocar. Eu sinto muito.. Apenas sua alma vira anjo, seu corpo mortal continua na terra..
E então eu olhei o rosto da minha mãe, e vi uma lágrima descendo. Uma lágrima de melancolia e tristeza profunda, uma lágrima derramada porque seu filho tinha morrido — uma lágrima que eu nunca poderia secar.
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Entre Inimigos
FantasyTodas as crianças humanas que nascem pertencem por direito ao reino dos anjos, e assim se sucedeu por séculos. Porém, o reino dos demônios começou a invejar esse direito, e a cobiçá-lo.. Observação: Capítulos serão postados todas as terç...