- Capítulo 01 -

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Aproximadamente três meses antes...

Noite de maré alta, as ondas quebravam com força na areia da praia, chegando até os pés da guarita do salva-vidas. A areia estava coberta de lixo que o mar encrespado trouxera de muito longe. Em meio a galhos de árvores molhados, restos de algas e lixos de origem diversa, encontrava-se um corpo. A respiração seguia fraca, o peito ascendia e descia lentamente. Um enorme cão Fila de pele rajada que passava pelas redondezas lambia satisfatoriamente o rosto desse homem, acabando por acordá-lo assustado.

Levantou-se rapidamente, e mal estava de pé quando um puxão da água o derrubou na areia novamente. Aliada a confusão mental, a zonzeira fazia com que o mundo parecesse girar desordenadamente, como faz um pião pouco antes de ser vencido pela gravidade. Andou cambaleando até a beirada de um calçadão que percorria a orla, sentando-se lentamente sobre o meio fio, limpou o rosto babado na camisa molhada.

Estava completamente encharcado e com um pouco de frio. Permaneceu encarando o mar por instantes, não demorou até que o cachorro viesse sentar-se ao seu lado. Tentava mas não conseguia se lembrar de como fora parar ali, na verdade, não se lembrava de nada. Olhava intrigado para suas roupas, não pareciam do tipo que alguém usaria para velejar: vestia uma calça jeans, um par de tênis pretos com listras laterais brancas, e uma camisa preta com uma cruz preta atrás de um símbolo de proibido.

Jogou o corpo na areia novamente, deitando com a cabeça na parte de concreto elevada do meio-fio, a lua cheia permanecia no foco de seus olhos, ocupando uma pequena parte de sua visão, e grande parte de sua atenção. Curioso e paciente, o cachorro o observava. O luar prateado instigava algo em sua memória que ele não sabia o que era, o matiz daquela luz lhe chamava atenção, quase que como por atração. Passou um bom tempo perdido em pensamentos, tentando juntar os fragmentos esparsos de lembranças que ele tinha, dobrou uma de suas pernas para cima, e enquanto fazia o movimento sentiu algo em seu bolso direito, levou a respectiva mão até lá e encontrou uma foto molhada.

Na foto ele conseguia ver duas pessoas: uma era ele, usando a mesma roupa que estava vestindo agora; a outra era uma mulher, posicionada atrás dele, com os braços passados pelo seu pescoço até encontrar sua mão na altura do peito. Intrigado, continuou olhando para a foto, ao passar o polegar sobre o papel liso para retirar a água que estava cobrindo a imagem pôde sentir que atrás daquela, encontravam-se grudadas outras fotos. Sentou-se para poder separá-las com cuidado. Uma delas era uma menina, uma criança, aparentava ter algo como dez anos de idade. Estava deitada em uma cama de hospital, e parecia ter sido tirada por ela mesma. A outra foto, era da mesma garota, com um chapéu de aniversário de papelão, ao lado da mulher que ele julgava ser a mãe, e que estava com ele na primeira foto.

Aproximou a foto dos olhos, olhando novamente para o rosto da menina, então uma forte dor latejou em sua cabeça, sentia como se sua têmpora fosse explodir, como se houvesse uma agulha querendo romper lentamente seu crânio de dentro para fora. Caiu com os braços no

chão, o estômago contraía-se a golpes violentos, fazendo-o vomitar um denso líquido estranho, a dor aumentara de intensidade, sentia como se o corpo estivesse em brasas por dentro. Quando já não aguentava mais, deu um longo grito de dor, que se propagou pela escuridão da praia e pelo vazio da noite.

- Você ouviu isso? Disse uma mulher dentro de um carro parado na areia, o rádio estava ligado com o volume baixo, sintonizado em alguma estação FM de música pop.

"Everybody stutters one way or the other, so check out my message to you."[01]

- Ouvi, e o que é que tem? Respondeu um homem, regado por um nítido desinteresse que chegava a beirar o desprezo. Eram aproximadamente uma e meia da madrugada, e ele não estava ali para conversas.

Devaneio - (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora