Três de junho.
Um dia antes, e longe dali, em um local remoto de uma região agrícola, havia um sobrado antigo e destruído, em uma pequena fazenda abandonada. Ao lado dele formava-se um pequeno tornado. Uma rápida escuridão tomou rapidamente conta do céu local, e caso houvesse alguém ali, essa pessoa teria certeza de estar presenciando algo sobrenatural.
O tornado era incomum, composto por uma fumaça escura, pesada, com um tom abissal que variava do preto a um tom de roxo profundo. O fenômeno durou pouco tempo e quando se encerrou o céu tornou a ficar limpo novamente. Era de tarde e excetuando pelo rápido evento de escuridão, o dia seguia normalmente, sem nada restar daquela breve escuridão a não ser uma figura negra, um avejão sombrio.
Era feita de uma substância muito parecida com a do tornado que a pressagiara.
O ser, de porte humanoide, estava parado de pé, olhando a casa em ruínas. Se manteve alguns instantes contemplando o que sobrara daquela residência, revelando através de um prazeroso e doentio olhar a sua satisfação.
- Então foi aqui que eu nasci.
Andou em direção à porta de entrada, perscrutando o local. Sua memória era lúcida e límpida no que tangia aos eventos relacionados a alguns cômodos e outros ambientes. Assim como a edificação anosa, os poucos móveis que restavam estavam em péssimo estado de conservação.
Existia um banheiro ao lado do quarto. No canto abaixo da janela estilhaçada havia uma banheira de metal coberta de ferrugem e água parada. A pia estava caída e partida sobre o assoalho e o vaso sanitário estava entupido. Uma infestação de baratas, aranhas e ratos povoavam todos os cantos, mas quando sentiram sua presença prontamente fugiram para seus esconderijos. Havia um cheiro pairando no ambiente, o aroma descendente da morte, e vinha de um lugar que ele conhecia bem. Um lugar que sua memória podia reproduzir completamente em cada detalhe, o lugar principal de sua concepção.
O porão.
Caminhou para o lado de fora da casa, passando por uma das portas duplas do alçapão do porão, que a muito encontrava-se aberta. Desceu pela escada, não havia iluminação lá, exceto pela esparsa luz que entrava pelo alçapão. Mas ele não precisava de luz para enxergar, sequer a presença dela o agradava.
A escuridão, por razões de origem, era o seu meio, onde sua visão era mais aguçada e também onde suas habilidades se manifestavam melhor. Ao adentrar na penumbra completa ele sentiu um alívio por deixar a luz vespertina. Varreu todo o ambiente com seus olhos esguios, procurando por algo.
Sua forma era muito semelhante à de um humano, exceto por um rosto afilado e sem expressão, como se apresentaria um rosto humano se estivesse oculto sob um pano preto. A boca quando se abria mantinha-se unida em vários pontos, assemelhando-se mais a um conjunto de rasgos feitos na região abaixo de onde seria o nariz. E os olhos emitiam uma pálida luz que variava do roxo ao azul escuro.
Um tremendo prazer tomou conta dele logo que adentrou aquele ambiente lôbrego. Viu no canto um pedaço de espuma mofado e ao lado dois buracos na parede, onde antes havia uma corrente afixada por grossos parafusos. Vagarosamente ele caminhou até lá, deslizando a mão pelos buracos.
Próximo a ele, encontrava-se a corrente, caída. Passou a mão suavemente sobre ela, como se acariciasse um animal de estimação. Em seguida, recolheu-a com as mãos, inserindo-a dentro de seu peito, que se abriu para recebê-la, absorvendo-a até que ela sumisse no meio da matéria de que ele era feito. A corrente passeou irrequieta pelo seu corpo e no momento em que ela encontrou seu lugar, anos de sensações acumuladas surgiram em sua mente, uma mistura de sentimentos que ele conhecia bem.
Derivava-se deles.
Amplificados pela sua essência, a dor, medo, agonia, o desespero, tudo de que ele era feito multiplicava-se exponencialmente. Para ele essa sensação era maravilhosa, chegaria a ser sublime, se sublime fosse um termo que pudesse ser aplicado às coisas de onde ele vinha. Permaneceu parado em regozijo naquele momento, relembrando e sentindo cada segundo da vida arruinada que o criou.
Após intervalos de prazer e satisfação, ele forçou a sensação a parar. Poderia passar anos se alimentando só das coisas que aquela corrente poderia transmitir. Mas existia algo melhor a ser feito, melhor e maior, algo que daria a ele um prazer tão intenso que ele não conseguiria conceber mesmo em sua mente poderosa. Algo que justificaria a sua existência e sua presença neste mundo.
- Preciso achar o garoto.
Subiu pelas escadas raspando a mão na parede. Cada grão de poeira daquele lugar poderia fornecer-lhe além do prazer, uma gama de informações preciosas. Mas ele já sabia quase tudo que precisava, estava na hora de começar a caçada.
Passeando ao redor do bosque ele se deparou com uma árvore em especial. Tocou-a, e os detalhes da história dentro dele só fizeram se fortalecer. Passou em meio as árvores o tempo que julgou necessário, para depois aproximar-se de uma piscina lateral à casa, entulhada por água, barro, e matéria orgânica decomposta, recendendo um cheiro insuportável. Colocou sua mão dentro daquele fluído maculado, e o toque fora tão energético que o fizera decidir entrar de corpo inteiro. Quanto mais imerso na podridão daquele lugar, mais excitação ele sentia.
Antagonicamente a sua composição turva e nebulosa, seus pensamentos eram claros:
- Houve muita dor aqui, e isso é bom. Isso é muito bom.
Resolveu ficar ali se alimentando dessa energia até que escurecesse. Ele preferia a noite. A luz do dia era um incômodo, um desconforto que logo ele não precisaria mais se preocupar.
- Tudo a seu tempo.
Pensava, enquanto estava parado com o corpo praticamente coberto pela água degradada da piscina, como se estivesse em uma relaxante banheira, aquecida pelo sofrimento herdado por aquelas lembranças.
- Tudo a seu tempo.
Repetiu novamente para si mesmo em pensamento. Satisfeito por lembrar que o tempo do sofrimento tinha a característica de se delongar muito além da normalidade.
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Devaneio - (Degustação)
FantasyNão se sabe como ou em que circunstâncias aquele homem havia chegado até a praia, as roupas molhadas sugeriam que ele poderia ter vindo do mar. Atordoado ele despertou confuso. Não sabia quem era, de onde vinha, nem porque estava ali, só tinha uma c...