Lição Cinco

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"- Não quer vir assistir a um jogo comigo no fim de semana? Para conversarmos. Para tomarmos umas cervejas, nos conhecermos melhor...".

Essas palavras não saíam da cabeça de Jack. As próprias palavras, na própria voz, ficavam ecoando no seu cérebro como uma maldição. Ele não acreditava que tinha dito aquilo. Ele não acreditava. Onde estava com a cabeça, Deus do céu? O que pretendia com aquilo? O que fizera Ray pensar sobre ele? Só queria poder voltar no tempo e retirar o que dissera. Só ficaria calado e se despediria de Ray e não estaria se sentindo tão atormentado agora. Só que... Ele não se arrependia de ter dito aquilo. Não de verdade. Não quando ele tinha o número do telefone de Ray e a possibilidade de sair com ele. Mas ele não queria enfrentar essa verdade, então se concentrou em se martirizar por ter aberto a boca e ficar pensando o quanto aquilo fora idiota, vergonhoso e desnecessário.

- Você é um tio muito dedicado, estou impressionada - disse Mia para o marido que acabara de sair do banho e se deitava na cama com ela já tarde da noite. - Não que eu não soubesse que você era assim. Só que... Uau. Estou mesmo impressionada.

Jack olhou para o sorriso de admiração da esposa e sorriu de volta.

- Também estou arrependida. Sabe, de não ter ficado. Com certeza teria valido à pena! Agora só me resta imaginar as coisas que a Susie contou. Ela não estava inventando, estava?

- Não. Infelizmente não.

- Por que infelizmente? - Mia riu. - Você deve ter sido maravilhoso!

Jack sorriu. Não adiantava fingir para si mesmo, aquele tinha sido um dia incrível e ele não estava nem um pouco arrependido das coisas que fizera, constrangedoras ou não. Dentro do jardim de infância de Ray era como se não houvesse distinção; todos eram crianças. Não. Não era bem isso. Mesmo que eles fossem adultos, era como se entrassem em outro mundo e aquilo não importasse. Eles libertavam o que havia de mais puro e espontâneo dentro deles e o ridículo e o constrangedor não importavam. Pelo contrário, era como se regredir ao nível de uma criança os engrandecesse de alguma forma, como se dessem um impulso para trás para irem mais longe, para crescerem por dentro, para resgatarem algo de que tinham se esquecido no meio do caminho para o amadurecimento. Jack nunca imaginaria que se despir de sua gravata e colocar orelhinhas de ursinho na cabeça fosse fazê-lo ter uma nova perspectiva tão profunda e diferente, que fosse fazê-lo aprender tanto. Mas tinha sido isso que tinha acontecido.

- Foi uma experiência e tanto - ele admitiu, permitindo-se se sentir satisfeito.

- Então o professor Ray está mais do que aprovado, não é? Deus, a Susie está apaixonada! Ela não parou de falar dele durante o jantar! Está tão ansiosa para voltar à escola amanhã que achei que não fosse dormir nunca!

Quando fora colocar a sobrinha na cama, Jack percebeu que ela parecia mesmo mais agitada que o normal, mesmo que devesse estar cansada de um dia inteiro na escola. Ela choramingou não querendo se deitar e quando finalmente Jack conseguiu convencê-la, ficou conversando com ela sobre o dia, sentado ao lado da cama dela, esperando que ela fechasse os olhos.

- Sabe tio Jack... Eu queria que papai e mamãe conhecessem o professor Ray.

O coração de Jack deu um pulo quando ela disse isso.

Desde a morte dos pais, toda noite era quase uma regra: Susie tinha que falar sobre os pais ou perguntar sobre eles. Era sempre tão doloroso que fazia Jack ir para seu escritório de casa depois que a sobrinha enfim dormia só para ficar lá, no escuro, pensando e tentando domar a dor antes que pudesse ir para a cama com Mia. Susie perguntava onde os pais estavam, mesmo que essa pergunta já tivesse sido respondida no dia anterior e no dia anterior ao dia anterior e na semana anterior e no mês anterior inteiro. Na maioria das vezes ela disparava mais um monte de perguntas impossíveis de responder e começava a chorar, frustrada e com saudades dos pais. Nos piores dias, ela gritava e exigia vê-los, implorava que Jack a levasse até onde os pais estavam, soluçava dizendo que queria um beijo de boa noite do pai e ouvir a mãe lendo uma história para ela. Tudo que Jack podia fazer em momentos como esse era abraçar a sobrinha e esperar que ela se acalmasse, destruído por dentro.

Jardim de Infância [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora