Lição Quatro

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No caminho de volta para casa, no ônibus, Ray não conseguia parar de sorrir para a janela, vendo a neve rodopiar pelo ar e cair nas ruas lá fora. Normalmente, nesse momento do dia ele estaria exausto, incomodado com o frio que enregelava seus dedos mesmo por baixo das luvas e louco para chegar em casa, mas hoje ele estava de bom humor e não se importaria nem se o trânsito estivesse horrível e atrasasse sua chegada em casa. Colocou sua música favorita para tocar nos fones de ouvido e deixou-se suspirar. Ele tinha tido um dia tão bom que sentia que nada podia estragá-lo.

Ele tinha adorado conhecer Susie. Ela era uma criança amável, criativa, divertida, carinhosa e interessante. Tinha feito anotações mentais sobre as pistas que tinha conseguido nesse primeiro dia de como trabalhar com ela. Ela tinha uma imaginação fértil e gostava de música, era bastante sensorial e enérgica. Ficar muito tempo sentada e concentrada numa coisa só não eram muito a praia dela. Ray teria que usar a abordagem mais lúdica possível com ela. E estava animado com isso. Estava animado porque a viu sorrir, rir e se divertir tanto mesmo com tudo que estava acontecendo na sua vida. Estava contente porque tinha a confiança de Jack para ajudá-la.

Jack... A primeira impressão que Ray tivera daquele homem não tinha sido muito boa. Julgara-o austero, irritante e cheio de si. Bem, ele era mesmo assim; havia tratado-o com superioridade como se pensasse que era melhor que ele e ainda debochara dele, ultrajando-o. Mas, felizmente, não era só isso. Ray adorou provocá-lo durante o dia, fazendo-o participar das atividades das crianças em parte porque sabia que aquilo ajudaria Susie, mas em parte também, ele admitia, porque queria se divertir à custa dele. Queria ver aquele homem arrogante e enorme sentado numa cadeirinha minúscula e sendo obrigado a ser humilde. Queria vê-lo deixar a pose séria de lado e desenhar com giz de cera. Mas logo aquilo se tornou mais do que uma piada. Tinha ficado realmente divertido. Nunca se esqueceria daquela cena de Jack, o gigante na casinha de bonecas, tomando chá imaginário com ele e a sobrinha em uma xícara que ficava quase inexistente na sua mão imensa; como ele batia a cabeça no teto e fazia Susan rir, como ele entrou na brincadeira e começou a fingir que servia leite e açúcar nas xícaras e comia os bolinhos de plástico. Nunca se esqueceria de sua imagem imponente com aquelas orelhinhas de urso e o modo como perseguiu as crianças e girou Susie nos seus braços, beijando-a e fingindo que ia devorá-la. A menina tinha ficado tão feliz; talvez ela não tivesse muitos momentos como aqueles com o tio. E Ray também tinha ficado estranhamente feliz, a cena tinha sido adorável demais.

Ele só se deu conta de que estava rindo de doçura se lembrando de tudo isso quando percebeu que o homem sentado no banco ao seu lado olhou enviesado para ele. Sentiu as bochechas esquentarem e quase colou o rosto na janela.

Então Jack não era apenas austero, irritante e cheio de si. Na verdade ele podia ser até bem altruísta; sem dúvida era forte, dedicado e determinado como poucos e tinha um coração extraordinariamente amoroso. Ele amava de verdade a sobrinha e faria qualquer coisa por ela, inclusive descer de seu pedestal e se sentar no chão com ela para ouvir uma historinha infantil. Inclusive tomar a responsabilidade de criá-la como filha e realmente agir como um pai cheio de carinho e preocupação. E ele também era divertido. E desenhava muito bem; fez com que Ray ficasse com vergonha dos próprios unicórnios. O fato era que estava curiosíssimo sobre Jack e suas fascinantes contradições. Queria conhecê-lo mais. Para que pudesse ajudá-lo.

Lembrou-se de que Jack o havia convidado para sair. Pensar assim fez com que seu rosto esquentasse de novo e ele sentisse uma tola necessidade de balançar a cabeça como que para espantar ideias impróprias. É claro que aquilo seria uma ótima oportunidade para conhecê-lo melhor, para conhecer Susie melhor e saber mais sobre com o que estava lidando. É claro, também, que ele não costumava sair com os responsáveis pelos seus alunos. Pensando bem, talvez isso fosse antiético ou algo assim. Mas aquela era uma situação especial, não era? A opinião de Ray era que toda ajuda era válida naquelas circunstâncias. Ele faria de tudo para ajudar um aluno que precisasse e nunca nenhum aluno tinha precisado tanto de ajuda quanto Susie Kingsley precisava. Bem, se era assim, então por que seu rosto ainda estava quente e seu coração tinha disparado e não sossegava? Ele estava nervoso, ansioso. Ao mesmo tempo, porém, aquela não era uma sensação de todo ruim. Era como se seu corpo estivesse todo quente de euforia, de expectativa, de determinação e de curiosidade. Ele estava enfrentando um desafio e sabia que havia muito em risco, mas estava decidido a aceitá-lo e ir até onde precisasse ir.

Jardim de Infância [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora