capítulo 3

113 1 0
                                    

          Teseu era um homem respeitado em Atenas por fazer cumprir as leis tradicionais dos antepassados. Mas era também muito amado pelos atenienses por todos os seus bravos feitos: havia vencido batalhas e libertado o povo do domínio de outros povos. Por isso, até seus súditos mais humildes, embora não estivessem entre os nobres convidados a abrilhantar os festejos do seu casamento, queriam contribuir  de alguma maneira para a festa.
          Com essa intenção, um grupo de artesãos, de vários ofícios, reuniu-se na casa do carpinteiro Pedro Marmelo. Pretendiam fazer uma surpresa a Teseu em homenagem ao seu casamento: preparar e ensaiar uma pequena peça teatral, que pudesse ser apresentada entre os vários números do grande espetáculo que seguirá à cerimônia. O dono da casa chefiava a reunião:
          - Bem, acho que agora já chegaram todos. Vou chamar um por um para ver se está faltando alguém.
          O tecelão, mais conhecido como Fundilhos, o interrompeu. Era um sujeito impaciente, mal-educado, embora fosse ótima pessoa; tinha o andar gingado e o corpo forte e atarracado. Estava eternamente disposto a chamar a atenção:
          - Não seria melhor contar primeiro como vai seu a peça? Assim a gente já fica sabendo do enredo... Depois, é só dizer os nomes dos atores...
          - Muito bem -concordou o anfitrião- A peça é: A mais lamentável comédia e a mais cruel morte de Píramo e Tisbe.
          - Uma verdadeira obra-prima, meus caros... É divertidíssima... -atalhou Fundilhos, como se conhecesse a obra. - Garanto que tudo mundo vai adorar. Diga que papel eu faço e depois vá chamando os outros. Vamos...
         Fundilhos não resistia. Queria mesmo comandar os trabalhos. Mas Pedro Marmelo não se importou. Explicou que o papel do tecelão seria o principal, o de Píramo. Fundilhos nunca tinha ouvido falar naquela história nem naquele personagem... Por isso, teve de perguntar:
          - E quem é esse Píramo? Um tirano ou um amante?
          - É um amante que, muito galantemente, se mata por amor -esclareceu Pedro Marmelo.
          Foi o que bastou para acender a imaginação de Fundilhos:
          - Ah então vou derramar algumas lágrimas para que o papel firewire bem real. Se depender de mim, vou provocar uma tempestade na platéia: tudo mundo vai chorar. Entretanto, no fundo, eu preferia mesmo era fazer um tirano... Poderia também ser Hércules, ou viver no palco as sete vidas de um gato...
          E, cada vez mais empolgado, começou a declamar um versos versos que ninguém entendia, mas que deixavam todos impressionados:

             - As rochas mais furiosas
                 Golpeando muito raivosas
                 As cadeias romperam
                 Dessa porta de prisão

                  Febo ao longe subirá
                  E em seu carro brilhará
                  Cometerão desatinos
                  Os mais tolos dos destinos.
         
          Os outros não sabiam se ficavam em respeitoso silêncio ou aplaudiam entusiasmado, embora alguns houvessem preferido que o sublime orador nada tivesse caldo... De qualquer modo, Pedro Marmelo continuou, dirigindo-se a Zé dá flauta, o consertador de foles:
          - Você vai fazer o papel de Tisbe, a dama que píramo deve amar.
          - Não, eu não!  Quero seu um nobre cavalheiro... Não posso fazer papel de mulher, eu já tenho barba...
          Naquele tempo, a sociedade grega não permitia que as mulheres fossem atrizes. Por isso, os jovens, ainda sem barba, costumavam fazer papéis femininos. No entanto, Pedro Marmelo não aceitou o argumento do Zé da flauta e explicou que a barba não fazia a menor diferença, pois ele poderia usar uma máscara e disfarçar a voz do jeito que quisesse. Ninguém o reconheceria e o sucesso seria grande.
          Mas bastou falar em sucesso para Fundilhos já se oferecer outra vez:
          - Eu posso esconder o rosto e fazer esse papel... Eu mudo a voz, assim, ouçam...
          - e fundilhos passou à demonstração: revirava os olhos , afina a voz, fazia trajeitos e dizia:
          - Ai, píramo, meu querido amor, sou uma pequenina Tisbe!
          Com alguma dificuldade, o carpinteiro conseguiu acalma-lo e passou à distribuição dos outros papeis: o alfaiate Chico Faminto, um magricela, sempre de boca aberta, faria o papel de Luar; já o funileiro, um grandalhão narigudo, conhecido como Mané Focinho, representaria o Muro; e o próprio Pedro Marmelo diria o prólogo da peça.
          Porém faltava um, o marceneiro Tião da Pua, amigo fiel e dedicado de todos, mas duro de miolos, dono de uma cabeca onde era muito difícil enfiar alguma ideia ou qualquer outra coisa... Havia mesmo quem dissesse maldosamente que o apelido não só lembrava seu instrumento de trabalho, usado para fazer buracos na madeira, como era uma alusão a um dos poucos objetos capazes de penetrar em seu cérebro.
          E lá estava Tiao em seu canto, à espera de um papel... Entretanto todos sabiam que ele era incapaz de decorar qualquer frase que tivesse de dizer... O bom Pedro Marmelo, toda-via, que até mesmo por fora do ofício era seu amigo mais chegado, tinha pensando em tudo:
          - E você , meu caro Tião da Pua, terá a pertencer do leão.
          - A parte do leão?- repetiu o marceneiro, sem entender.
          - É isso mesmo. Vai fazer o papel do leão...
          - Ah sim... -respondeu Tião.- Mas então você tem de me dar logo o texto para eu ir estudando... Não tenho muita facilidade para decorar, vocês sabem...
          Pedro Marmelo parecia mesmo um autêntico diretor de teatro, pois logo explicou:
          - Não, esse papel não tem palavras. Você pode improvisar, e só rugir...
          Tião dá Pua sorriu feliz, porém Fundilhos se intrometeu novamente:
          - Deixe eu fazer o papel do leão também, por favor! Quando eu acabar de rugir, todo mundo vai pedir bis, de tão feroz que vou ser.
          Pedro Marmelo, pacientemente, teve de usar um argumento definitivo para acabar com as pretensões do tecelão:
          Não Fundilhos, você é o único que pode interpretar Píramo, uma personagem muito importante, um homem galante, como deve ser um verdadeiro cavalheiro. Tem que ser você...
          Resolvida essa questão, cada um recebeu seu papel para poder estudar. E, para que ninguém visse o ensaio e atrapalhasse a surpresa que preparavam para Teseu, combinaram encontrar-se na noite seguinte, fora da cidade, num certo bosque.
         

Sonho de uma noite de verão (escrevendo)Onde histórias criam vida. Descubra agora