Two | Avenida Mills

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Na TV estava passando algo sobre uma tragédia que ocorreu em um bar no Kansas. Não assistia TV com frequência, mas no Bra's havia sempre uma ligada e às vezes eu escutava algo. Em casa nunca tive tempo pra isso, com exceção de algumas raras folgas durante a semana. São 9 PM e estou em minha cama, enrolada em uma teia de pensamentos sobre a incerteza do meu futuro quando fui distraída pela notícia.
Seis pessoas foram mortas em um bar. Não é uma notícia incomum, tendo em conta que em bar geralmente se encontram as gangues, porém havia requintes de crueldade dos quais eram assustadores. Não houve nenhum tiro sequer, todos foram mortos a facadas, um deles teve o corpo aberto de ponta a ponta. Começo a pensar no que a morte significa para mim.
Quando minha mãe morreu, perdi a única pessoa com quem eu me importava. Ela era uma senhora doente e ranzinza, que controlava os meus passos sem se preocupar com a minha vontade. De qualquer forma, era a única pessoa que se preocupava comigo o suficiente para se importar com as minhas ações. Não foi uma surpresa quando ela faleceu, aos 42 anos, de uma doença pulmonar.
Era de se supor que eu deveria sentir empatia pelas famílias que esses homens deixaram. Era de se supor que eu poderia me colocar no lugar das filhas deles, que cresceriam sem pais. Quando penso nessa possibilidade, sinto algo piscando em meu cérebro, bem, um piscar lento e progressivo, que tenta me dizer que há alguma obrigação moral por trás disso da qual eu deveria seguir. Não consigo me importar com isso, embora eu agradeça por pelo menos minha consciência ainda ser capaz de me acusar.

O dia em que eu mais temia chegara: o fim do mês. Já pagara o aluguel, e não havia mais nada em meu bolso. Nem um dólar sequer. Minha geladeira estava vazia, meu chuveiro queimado e as contas do apartamento não estavam pagas. O ser humano, quando desesperado, tenta se apegar a alguma coisa. Não sinto prazer nem consolo em qualquer leitura ou música, não tenho interesse por nenhum homem, não tenho dinheiro para me divertir e não tenho feito amizades. Não acredito que há um ser que virá me salvar. Será que desenvolvi resiliência o suficiente para me manter tentando sobreviver dia após dia? Não sei no que tenho me apegado. Mas sei que sobrevivo porque as situações pelas quais eu passo não me afetam. Como se minha mãe, enquanto discursava sobre não haver diversões reais nessa vida quando eu tinha apenas nove anos, já soubesse que eu seria sua discípula mais fiel.
Uma ideia em minha mente lutava para emergir. Muito antes de Tara me fazer aquela proposta que me fez encarar minha realidade, antes de eu perder o emprego noturno, ou talvez antes de eu me mudar para esta cidade, esta ideia tem tentando emergir. Tentei afogá-la colocando-a no fundo da minha mente um pouco depois de minha mãe morrer.

- Não diga esse tipo de coisa, a senhora não vai morrer. – Eu disse, tentando colocar minhas mãos em cima da sua. Era óbvio que eu sabia que ela me afastaria.
- Não diga bobagens, América. Eu não sou idiota, tampouco você o é, embora às vezes pareça. Vou morrer bem em breve. Tenho algumas coisas pra te avisar. Ela tossiu muito, várias vezes, o que de alguma forma me fazia contorcer mais do que ela.
- Mude-se para outra cidade.
- Por quê? – Tentei esconder a surpresa. Nunca em minha vida minha mãe sequer insinuou que não gostava desta cidade. Na realidade, ela não parecia gostar muito de nada.
- Não fique em Des Moines. Você tem que prometer que vai sair dessa cidade, e para bem longe.
Pensei sobre o assunto nos poucos segundos que eu tinha antes que ela me repreendesse. Tinha alguns amigos aqui, afinal de contas cresci nessa cidade, tinha um emprego em uma lanchonete normal, mas tinha sorte de ter bons colegas de trabalho. Minha mãe não apoiava nenhuma dessas amizades, porém não as atrapalhava. Mas era óbvio que ela não estava pensando nisso. E era óbvio também que eu não deveria pensar.
- Okay.
- Não vou pedir sua palavra porque não sei se você tem uma.
- Alguma vez não cumpri alguma promessa que fiz à senhora? – Perguntei, de certa forma ofendida, mas não poderia dizer que não esperava esse tipo de comportamento dela.
- Não sei, como posso saber. Não confio nisso, de qualquer forma. Vá para outra cidade e continue exatamente como está. Minha aposentadoria morre aqui comigo e você vai ter que se virar para encontrar alguma coisa, mas tenho certeza que você dará um jeito, há muitas cidades boas para se conseguir dois empregos e você irá bem se não desperdiçar nada.
- Por que a senhora supõe que eu vou continuar vivendo após a sua morte?
Ela pareceu contrariada.
- Porque você deveria.
- Não há nada que me obrigue a isso.
- Não, só o meu exemplo. Eu poderia ter te matado, ou me matado quando soube da gravidez, mas não fiz isso, fiz?
- E não se arrepende disso?
- É muito tarde pra se arrepender. – Ela murmurou pensativa.
- É justamente isso que eu busco evitar.
- Você não precisará evitar nada disso. – Ela foi ríspida. Essa forma de falar fazia com que eu jamais a contrariasse.

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