Capítulo 1

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'Não queira um demônio em sua cama. A não ser que deseje a morte. No entanto, morrer de prazer nunca foi tão instigante.'


Um ano, dois meses e onze dias haviam se passado. De certa forma, eu morri naquela tarde. Minha paz, meus sonhos de um futuro repleto de amor, um relacionamento confortável e meus desejos juvenis... Não conseguia sentir mais nada que um vazio.

A noite trazia um silencio perturbador. Dormir se tornou impossível sem ajuda de alguns remédios.

Samael... Porque me roubou a fé e a paz?

Porque nunca mais voltou?

Eu voltei a rezar todas as manhãs, agradecia de forma mecânica... Mas sentia que precisava praticar a fé para que pudesse um dia voltar a crer.

Um trovão assustador me fez despertar do transe no comecinho da tarde. Estava a varanda da cozinha. O aroma do bolo de fubá percorria quase toda a casa. Levantei-me da rede, deixando sobre a mesma o antigo livro de poesias que comprei há poucos dias em um sebo na Lapa.

– Até que enfim despertou ein, Clarice.

– Não estava dormindo... – neguei, encarando os olhos castanhos, com pálpebras pesadas, cheias de rugas. Até que sorri e admiti. – Tá, só tirei um cochilo.

– Isso que dá não dormir a noite. – Dona Olária revidou.

Sentei-me frente á antiga mesa de madeira que um dia recebeu sobre ela as vestes do meu demônio.

Com os pés cansados, Dona Olária caminhou arrastada até o fogão industrial antigo. Suas panturrilhas eram grossas e rechonchudas, assim como todo seu corpo idoso. Observei como ela caminhava em um ritmo desacelerado, com a calmaria de quem já viveu uma vida inteira. Essa mulher... Negra, de sorriso simpático... Nos seus avançados sessenta anos... Mulher de raízes fortes, de abraço morno e palavras certas... Cozinhava como ninguém.

Quando ela retornou a mesa, trazia um bule esmaltado, azul escuro, fumegante, cheio de aroma e sabor...

– Tome um café. – Ela encheu com café a minha caneca preferida, que a frente vinha escrito I Love Rio, presente de um turista alemão. – Vai precisar de energia.

Ela tinha razão. A casa estava prestes a receber muitos hospedes... Era inicio da alta temporada. Ah cinco dias havíamos passado uma noite tranquila, apenas eu, ela e nosso jardineiro – faz tudo, José.

Quase todos os onze quartos estavam reservados. Em sua maioria, Alemãs. Um casal Britânico e um pequeno grupo de três amigas da Argentina. Esperávamos por todos no dia seguinte. Os hospedes queriam assistir ao espetáculo de fogos no réveillon carioca.

– José precisa ir a floricultura buscar os arranjos que você encomendou.

– Ele deve ir no fim da tarde... – Disse quase distraída com minha caneca de café. – Ele comentou algo sobre estar muito calor para trazer os arranjos agora cedo.

Dona Olária encarou algo lá fora... Além da varanda da cozinha e sorriu brevemente.

– Teremos uma tempestade daquelas... – Comentou.

– Chuva de verão, passa logo. – classifiquei a mudança repentina de tempo. Após o trovão que me fez despertar de minha rede, o céu encobria-se de nuvens negras.

Ouve um breve silêncio logo após as minhas palavras. E, em seguida um raio cortou o céu, junto a uma enxurrada de trovões e parecia que era o inicio do fim do mundo.

– Minha mãe dizia que chuvas de fim de ano, levam embora o mal e trazem um novo ano de prosperidade. E, que quando não temos chuvas de fim de ano, é sinal de um próximo ano ruim...

Um frio correu minha espinha, arrepiando meus pelos da nuca e braços. No entanto, eu ignorei. Fiquei de pé, deixando minha caneca ainda pela metade com café sobre a mesa de madeira rústica.

– Ainda bem que teremos uma tempestade. – Sorri.

– É... Ainda bem.

– Tenho que organizar o meu quarto. – Disse a Dona Olária, ao sair da cozinha e seguir dois andares acima, pelos corredores limpos, de paredes pintadas de branco, e portas marfim.

Quando finalmente a tempestade chegou, trazendo com ela o delicioso aroma da terra molhada e das arvores ao redor de minha casa, eu pude apreciar o som da chuva lá fora... Batendo em meu telhado, sobre a piscina e um gotejar insistente no parapeito da janela do meu quarto... Então relaxei. Esqueci por um momento das pessoas em minha casa e me entreguei à lembrança daqueles olhos azeviche ao me possuir.

– Porque nunca voltou...? – Minha pergunta rompeu meus pensamentos e tornaram-se palavras sussurradas em meus lábios.


Possuída Por um Incubus (VOLUME 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora