Acordando

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      A cara de espanto de Renato observando o amigo fitando o nada era mais do que visível.

        — Bernie! Bernie!

       O garoto continua olhando para a frente, fixamente. Renato grita mais uma vez:

        — Bernardo!

        Com o grito, enfim Bernardo acorda, meio confuso:

        — Eita... que foi? Onde eu tô?

        — Viajando demais... que que tu tem usado pra ficar assim? É da boa? - diz  Renato, aos risos.

        — Vai se ferrar, palhaço! - responde Bernardo, rindo com o amigo.

        — Ei, ainda estamos em aula! Vamos manter o decoro por aqui, que tal? - grita o professor, da frente da sala onde estavam os meninos e o resto da turma.

        — Foi mal, fessor! - gritam Renato e Bernardo em uníssono.

        Depois da bronca, Renato passa a sussurrar para Bernardo:

        — Tá, agora me conta, o que diabos você tava pensando? Tu tava vidrado no nada, cara!

        — Ah, mano, sei lá, tinham duas mulheres, uma era bem novinha e tava no chão sangrando, a outra já devia ter uns 26, tava com um fuzil na mão e tal, foi estranho.

        — Ah, eu sei o que acontece! Aí eu chego e pego as duas e faço um sexo bem gostoso com elas! — diz Renato, gargalhando.

        — Você tem problemas? Eu disse pra parar de conversar! — grita o professor.

        — Foi mal, fessor! — gritam os dois, juntos, mais uma vez.

        Final de aula, todos saem, e por último, dois garotos que ficaram recebendo o sermão do professor bravo. Um baixo, pela clara, cabelo liso e repicado, magro, vestindo a blusa branca com o emblema da escola — um falcão — calças jeans azulada e tênis pretos e azuis, que atendia por Bernie. O outro, Renato, era alto, negro e magricela, cabelos baixos, praticamente raspado, com a mesma vestimenta de Bernardo, salvo pelos tênis pretos e verdes.

        — Tá, agora explica, mano, por que você tá vendo essas coisas?

        — Eu não faço ideia, cara. Muitas vezes eu paro pra pensar em algo e essas imagens surgem do nada, outras eu só observo algo e as cenas surgem na minha mente! Isso tá me deixando paranóico! — responde Bernardo.

        — Bom, quando você me conheceu, quis ser meu amigo, então sabemos que você já é meio pancada das ideias, mas ok...

        Os dois caminham para fora do colégio, indo em direção a um ponto de ônibus. Quando vê que o coletivo que embarcaria está quase saindo, Renato corre, gritando para Bernardo:

        — Relaxa, maninho, eu vou te ajudar! Tenta acalmar e colocar a mente no lugar!

        E Bernie fica lá, parado, vendo o ônibus levando o seu amigo para casa. Lentamente, ele anda até o ponto, ficando de baixo da área coberta. O sol realmente não estava com cara de muitos amigos, e decidira queimar com intensidade. Mal senta e seu celular toca. Um toque rápido, um rock que ouvira em algum lugar e se apaixonara, e tivera que baixar. Ao olhar para a tela, uma surpresa: era a sua mãe.
        Sua mãe nunca ligava, a não ser que algo errado tivesse acontecido. Não sei o que eu fiz ou deixei de fazer, mas vai dar problema, pensa Bernardo.

        — Bernardo! Quero um bom motivo pra ainda não ter chegado em casa! Estou aqui no trabalho, mas sua irmã está te monitorando!

        — Mãe, o horário de verão acabou. Atrasa o relógio.

        — Ah... Então... Então chegue logo em casa! — grita a mãe.

        Bernie desliga o celular, e suspira, devolvendo o aparelho para o bolso. Logo se aproxima uma mulher, loira e alta, carregando várias sacolas e pergunta ao menino:

        — Você sabe me dizer se o 447I passa por aqui?

        — Passa, passa sim. Ele tá demorando demais, assim como o 231.

        — O 231? É o que passa no Bairro Barcelona? — questiona a mulher.

        — É esse mesmo, eu moro lá.

        — Menino, o 231 não tá passando por aqui não, meu filho, houve uma mudança na linha, você vai ter de atravessar o bairro até o outro ponto e pegar o ônibus lá!

        — Ah. Obrigado.

        Bernardo sai andando, cabisbaixo. Seria uma chateação andar por mais de vinte minutos sob um sol infernal. Enquanto caminha pela calçada, observa todos os detalhes pela rua. Pessoas caminhando, carros passando, pássaros voando. Ao levantar o olhar para o alto de um prédio, observa a bandeira do Brasil. Porém, algo chama sua atenção. O pano trêmulo está em cores neutras.
        Levando as mãos aos olhos, ele os esfrega e vê que o prédio também perdeu suas cores, substituídas por um tom claro de cinza. Logo, vê que muitas coisas ao seu redor, desde carros até pessoas, tudo está em tons monótonos e neutros.
        Mesmo sendo algo chocante, ele torna a caminhar, maquinando tudo:

        — É tudo coisa da minha cabeça, é tudo coisa da minha cabeça...

        Ele avista, então, a escadaria para baixo da terra, uma galeria subterrânea que passa por baixo de uma rodovia, o caminho para chegar ao ponto onde o ônibus para seu bairro passa. Ele corre até lá, e desce rápido as escadas, quase caindo. Ao pisar no último degrau, observa ao seu redor.
        Tudo está acinzentado.
        Ele caminha querendo achar a lógica. Não faz sentido, porque isso estaria acontecendo?
        Ao olhar para um canto, algo lhe foge à razão. Um mural, repleto de cores, contrastando com o tom triste do cinza. Bernardo se aproxima, tocando na parede. Sente algo estranho, uma energia percorrer seu rosto. Ele fecha os olhos. Quando os abre, olha em volta:
        Tudo está repleto de cores, como deveria ser.
        Bernardo suspira, ajeita a mochila nada costas e segue para o ponto de ônibus o mais rápido possível.

Arte do capítulo:
Foto por: Ana Kariny

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