Acordando de Novo

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        — Menino, você tá bem? — questiona uma senhora de idade para Bernardo, que fitava o nada, assim como antes.

        — Que? Oi, não, é que... — Bernie se perde no meio das suas palavras e pensamentos.

        — Você quer que eu chame o motorista ou te leve a um médico?

        A palavra "motorista" fez com que o garoto se encontrasse no meio da bagunça que se tornou sua mente. Estava no ônibus para chegar em casa, mais lento que o normal, estava com outros milhares de carros e caminhões num engarrafamento. Tateou o corpo, sentiu o suor que seu organismo liberava. Mas não era uma situação comum. Era um assassinato. A mulher fora queimada viva, e ele presenciara, mas não pode intervir.

        — Menino, me responde! Você tá bem? — insistiu a velha senhora.

        — Tô, tô sim, é que eu tava pensando na vida, sabe...

        — Ah, sim, compreendo. Essa vida de adolescente hoje em dia é mais complicada que antigamente, né? — responde a mulher, sentando num assento  próximo ao do menino, e continua — Mas não é melhorar sair daí de perto dessa janela? Você tá suando demais!

        Bernardo pensou em dizer o que havia visto, o que havia sentido, mas provavelmente a velha mulher o levaria ao manicômio mais próximo possível. Não havia fundamentos para acreditar naquilo. Aurora Boreal, no Brasil?  Nunca! E se dissesse sobre a mulher que matara a rival com fogo? Bernie seria arrastado para a Delegacia de Polícia pra prestar queixa, pra tentar explicar. Resolveu guardar pra si mesmo e mentiu:

        — Não, tá tudo bem, não tem problema ficar aqui não, sol tá forte mas eu tava com frio, isso aqui tá muito bom...

        A mulher o observou por alguns segundos, talvez tentando acreditar no que o garoto dissera, e de repente já o ignorava como o resto dos passageiros no ônibus. Ainda bem, pensou Bernardo.

        De repente, o trânsito volta a fluir e o coletivo volta a acelerar. Bernardo apoia o cotovelo na janela aberta, e fica observando o mundo ficando para trás a medida que o ônibus acelera. Observa tudo, as árvores no caminho, as centenas de lojas e outros estabelecimentos, um tráfego intenso de carros na direção contrária, as milhares de pessoas que estão em suas atividades rotineiras.

        Um apito estridente se ouve. Alguém puxou a cordinha pra solicitar a parada do ônibus. Bernie virou-se para ver quem era, porém, sem maiores interesses, acabou voltando o olhar para o lado de fora. Notou um letreiro digital do lado contrário da rua onde o coletivo estava, que exibia alternadamente a data atual do dia e o horário. Ao lado, uma pessoa incógnita, trajando um casaco branco e shorts jeans curtos, o que fez Bernardo crer que era uma menina, porém uma menina maluca: Quem em sã consciência estaria usando esse tipo de roupa, um casaco, sob um fortíssimo calor? Mesmo se a pessoa tivesse febre ou algo do tipo, seria inviável aquela vestimenta. As pernas da menina possuiam marcas de cortes, aparentemente automutilação. Um filete de sangue próximo ao joelho contrastava com a pele clara dela, parecia que tinha caído e se machucado, ou algo do tipo. De repente, ele se assusta.
       
A suposta menina, que antes olhava para baixo, agora encarava o rosto do garoto. Mechas de cabelo cobriam parte da face da jovem menina, cabelos lisos castanhos encobrindo parte de seu rosto, um dos olhos, na cor avelã e uma pequena boca, com uma pequena cicatriz no canto superior do lábio de cima. Ela o fita por mais alguns segundos, e sai caminhando em outra direção, deixando Bernie mais confuso.

        — Algo tá muito errado por aqui...

        Eis que um homem magricela entra no ônibus. Alto, pele negra, uma camisa amarela e uma calça jeans num tom azul escuro, calçava um tênis azul meio velho. Os cabelos curtos e encaracolados, olhos castanhos e nariz de batata, além da boca ressecada compunham o rosto. Uma alça na transversal segurava uma bolsa com o zíper aberto, e a voz do homem ecoou pelo coletivo:

        — Boa tarde, senhoras e senhores, eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas estou aqui em nome dessa fundação que ajuda pessoas viciadas em drogas, você que tem um parente que usa drogas, que é álcoolatra, você que conhece alguém nessas condições, nossa fundação ajuda pessoas assim, comigo foi assim, eu vivia usando maconha, vivia tendo alucinações...

        A expressão de Bernardo é de puro choque. Só de ouvir a palavra "alucinação", sentiu seu corpo gelar. Só tinha uma pessoa que sabia daquela situação, o Renato. Mais ninguém. E talvez fosse uma boa continuar assim, pelo menos por enquanto. Já pensou o que aconteceria se ele dissesse que viu uma mulher queimar a outra viva e jogar uma rosa para ela enquanto o céu exibia o esplendor de uma Aurora Boreal? Poderiam achar que o garoto estaria sob efeito de drogas!

        O ambulante, então, distribui uns panfletos entre alguns passageiros, boa parte os rejeita. A velha senhora que se preocupara com Bernardo pega um, e ele, por sua vez, acaba aceitando um também. Alguns pontos depois, o ambulante desce, e mais a frente, o ponto do garoto se aproxima. Ele se levanta para puxar a cordinha, e com o ônibus ainda em movimento, se move para perto da porta. A senhora de antes, então se despede:

        — Tchau, menino! Vá com Deus!

        Ele responde com um singelo sorriso e um aceno de cabeça. Enfim, estava a alguns passos da sua casa. E então poderia colocar sua cabeça no lugar... supostamente.

Sonhos, Músicas e os Trechos de um Verão Onde histórias criam vida. Descubra agora