CAPÍTULO TRÊS: EU QUERO QUE O MUNDO PARE (DEVONNE )

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CAPÍTULO TRÊS
EU QUERO QUE O MUNDO PARE (DEVONNE)

Não houve barulho. Nem da arma, nem dela quando foi atingida. A arma tinha silenciador, disse um policial. Mia não gritou, talvez não tenha tido tempo. Então não houve barulho algum quando ela foi assassinada na porta de nossa casa, mas, em compensação, teve muito barulho depois. Ela não gritou, mas eu gritei. Ela não pediu ajuda, mas nossa mãe sim, implorando à divindade de sua devoção para que trouxesse sua filha de volta. A arma tinha silenciador, mas o punho do meu pai contra o vaso da sala, não. Ela se foi em silêncio e deixou o mundo imerso em uma dolorosa cacofonia gerada por sua perda.

E não poderia ser diferente. Mia sempre foi a mais barulhenta de nós duas, com seus fones ligados em 80% do tempo ou o som do carro no máximo quando tinha que lavá-lo, ou, até mesmo, o pequeno rádio do seu quarto tocando aquelas músicas em línguas estranhas que tanto gostava, mesmo que mal entendesse uma palavra.
"Música não é compreensão, música é emoção. A gente sente, não questiona" era o que ela dizia quando eu fazia algum comentário sobre o idioma nativo dos integrantes da sua banda favorita da vez. Ainda lembro de quando ela se encantou por uma banda escocesa de indie-pop chamada Belle & Sebastian, mas pelo menos eles cantavam em inglês. Lembro-me que quando Mia descobriu a existência deles passou um dia inteiro ouvindo a mesma canção, a única que conhecia até então.
"Não vai baixar outras?" perguntei.
"Vou" disse ela "quando ficar cheia dessa". E por horas ao longo daquele dia, eu a ouvi cantarolar baixinho um mesmo refrão:

"I want the world to stop
(I want the world to stop)
Give me the morning
(give me the understanding)
I want the world to stop
(I want the world to stop)
Give me the morning, give me the afternoon
The night, the night...”

E foi nisso que pensei ao receber a notícia, foi o que senti. Eu só queria que o mundo parasse porque não parecia haver algum sentindo em viver em um mundo onde minha irmã estava morta. Onde nunca mais a ouviria me contar sobre suas músicas estranhas e poesias mais velhas que os filmes em preto e branco que me obrigava a ver com ela nas noites de sábado em que estava deprimida ou mal humorada demais para sair com Jade ou com algum garoto. Também nunca mais ficaria noites em claro, a esperando chegar e entrar pela janela para que nossos pais não vissem que havia saído mesmo que eles a tivessem proibido e então ela se jogaria na cama, como sempre, e suspiraria longa e profundamente antes de me contar como havia sido o encontro com ele.

"Ele" era assim que Mia sempre se referia ao garoto com quem saía nas noites em que voltava mais tarde para casa, nunca o nomeava e isso era o bastante para que eu entendesse que "Ele", quem quer que fosse, não era o seu namorado, Clark.
Uma vez ousei perguntar se ela realmente amava o Clark. "Quem não amaria?" foi o que ela me respondeu. Metade das garotas dessa cidade, menos você, foi o que pensei, mas guardei para mim. Ela confiava em mim o bastante para falar sobre "Ele" mesmo sem deixar claro, e eu me sentia sortuda por isso. Principalmente por que nem mesmo Jade, sua melhor amiga, sabia a respeito. Era um segredo só seu que Mia escolheu dividir um pedaço comigo.
Ela sempre voltava sorridente das noites com ele, mais leve e livre, as vezes pulava na cama cantarolando baixinho canções que eu não compreendia, ou caía no chão do quarto e ficava sorrindo sem parar enquanto me contava sobre onde tinham ido e como ele a fizera se sentir. Nesses momentos parecia que ela iria começar a flutuar, erguendo-se do chão para depois atravessar a janela e ir voando de volta para os braços dele. Onde se sentia feliz e segura. Onde podia ser livre para ser quem era.
Sempre tive vontade de perguntar porque ela não deixava o Clark e ficava com "Ele", nunca tive coragem. É mais uma das perguntas que nunca fiz e jamais terei a chance de fazer.

Agora estou deitada sobre o tapete felpudo roxo que cobre o chão do seu quarto, meus olhos fitam o teto exatamente como ela fazia, mas não há sorriso em meu rosto e meus olhos estão cheios de lágrimas. Meu coração pesa. Sinto seu cheiro no ar, no chão, vindo dos lençóis, de suas roupas no armário, do perfume sobre a cômoda. Sinto sua presença ainda aqui, tão real como se eu pudesse virar para o lado e vê-la sentada na cama, com as pernas cruzadas e um livro no colo, os fones no ouvido tocando algum rap coreano ou rock alemão. Seu olhar encontraria o meu e ela me chamaria para se juntar a ela e ouvir a mais nova "melhor música de todos os tempos".

Ah, Mia, dói tanto, mais tanto saber que você morreu.

Me levanto e alcanço seu MP3 em cima da cama, dou play na última música que ela ouviu antes de sair noite passada sem saber que jamais voltaria.
Bermuda Triangle é o nome da faixa.
Não entendo uma só palavra do que o cara diz, mas sei que é coreano. Me permito ouvir sua música por alguns segundos enquanto lágrimas me escapam, aperto o "pause" e coloco o MP3 de volta na cama. Exatamente onde ela deixou. Exatamente onde deve ficar.
Ela não o tirará de lá nunca mais e não tenho o direito de o fazer. Manter suas coisas como deixou é o meu jeito de mantê-la aqui. A cada vez que entrar nesse quarto será como se Mia tivesse acabado de sair, talvez isso seja mais uma tortura que um conforto mas, seja como for, é só o que me resta dela.

Ouço o barulho das sirenes de uma ambulância, a tempo de alcançar a janela e ver o veículo indo embora, levando o corpo da minha irmã. Levando um pedaço meu. Ainda há policiais lá em baixo e no jardim, minha mãe soluça nos braços do meu pai. Ele também está chorando, é a primeira vez que vejo nosso pai chorar.

Quando Mia tinha doze anos e eu nove, ela me desafiou a fazer nosso pai chorar. Ele nunca chorara na nossa frente. Mas Mia jurava que podia mudar isso, e propôs um desafio: quem de nós duas conseguisse realizar o feito primeiro, ficaria com o quarto só para si e a outra iria para o sótão. Ainda dividíamos o quarto naquela época, foi antes do papai reformar a casa e cada uma ter seu espaço. Por uma semana tentamos de tudo para fazê-lo chorar: desde filmes tristes a fingir uma fuga (Mia se escondeu e eu disse que ela tinha fugido para sempre. Nossos pais surtaram e eu fiquei com tanta dó que contei toda a verdade). Nada adiantou. Papai não chorou, até riu da nossa tolice. Nem quando a vovó morreu nós o vimos chorar, ele só se trancou no escritório e ficou lá por horas, sem falar ou ver ninguém. Deve ter chorado, mas não vimos.
Até agora.
Parabéns Mia, você conseguiu. Sinto um sorriso se formar no canto do meu rosto, um sorriso seguido por lágrimas. Você conseguiu fazê-lo chorar, porque você morreu. Hoje não é papai quem está chorando.

BEM ALI NA RUA 13 [ HIATUS ] Onde histórias criam vida. Descubra agora