CAPÍTULO SETE: A ESTRANHEZA DA DOR (DEVONNE)

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CAPÍTULO SETE: A ESTRANHEZA DA DOR  (DEVONNE)


Na manhã do enterro da minha irmã, estranhamente acordei pensando em poesia. Mia adorava poesias e vez ou outra declamava algumas para mim, enquanto praticava solos no piano da sala. Dizia que música e poesia estavam inteiramente ligadas, como uma coisa só expressa em fomatos diferentes. Mia dizia que essa coisa era a emoção por trás dos versos ou notas.
Na manhã do seu enterro, acordei pensando em um poema do Charles Bukowski que ela recitara para mim certa vez, quando eu tinha cerca de dez anos e quebrei o braço ao cair da laranjeira que tínhamos no quintal.

"Me distraia para que a dor passe" eu pedi. E Mia falou que na vida, há momentos, em que a dor não vai passar só porque esquecemos dela por alguns segundos. Há momentos em que a dor fica, disse ela, e precisamos aguenta- la. Então, eu aguentei, segurei o choro e esperei até nosso pai chegar em casa. Foi um péssimo dia para duas garotas ficarem sozinhas, aquele. Enquanto esperávamos e as lágrimas pinicavam meus olhos, Mia segurou minha mão e recitou um poema sobre dor e, por alguma razão, me ajudou a sentir melhor. Embora aparentasse falar de uma dor diferente da que eu estava sentindo.

"A dor é uma coisa estranha.
Um gato que mata um pássaro,
um acidente de automóvel,
um incêndio...

A dor chega,
BANG,
e eis que ela te atinge.

É real.

E aos olhos de qualquer pessoa pareces um estúpido.
Como se te tornasses, de repente, num idiota.

E não há cura para isso,
a menos que encontres alguém
que compreenda realmente o que sentes
e te saiba ajudar..."

Quando Mia morreu fomos atingindo por uma dor aguda e inesperada. Uma angústia que se retorcia por dentro emaranhada em negação e pesar. A dor atingiu a todos que a conheceram e a amaram. E, como no poema, não havia cura para isso. E embora houvessem outras pessoas que sentiam o mesmo e poderiam compreender minha dor, não ajudava. Não sabíamos como ajudar uns aos outros.
Minha mãe se trancou no quarto de Mia, meu pai no escritório e eu... bom, eu passei a noite debruçada sobre o velho piano, arriscando as notas que constituíam o Réquiem de Mozart e errando por vezes demais. Enquanto lágrimas caíam e eu pensava em poesia. Porque dessa vez não pude segurar as lágrimas e esperar que meu pai viesse me salvar, dessa vez não era um braço quebrado, era um coração. E não só o meu. Como podíamos consertar uns aos outros agora? Todos quebrados e ilhados em cômodos difetentes da casa.

       Enquanto tentava acertar as notas no piano, me perguntei onde Mia estaria agora. Poderia me ouvir? Por que uma canção fúnebre era uma de suas favoritas?

Quer que eu a toque a manhã para você, Mia, antes que joguem terra e flores sobre sua pele fria?

Não veio resposta. Mas decidi que a tocaria mesmo assim.

A dor é uma coisa estranha
Um gato que mata um pássaro
Um acidente de automóvel
Uma garota assasinada
Na porta de casa...

A dor chega,
BANG,
e eis que ela te atinge.

Como a bala de uma arma
Sorrateira e silenciosa.
Veloz
Você nem a vê chegar, só sente.

Eu sentia.
Mia também sentiu.
Tipos diferentes de dor, mas com a mesma consequência: nos partiu, nos violou e nos separou para sempre. Matou a ela e matou um pouco de cada um de nós.

É, Bukowski, a dor é mesmo uma coisa estranha.

    

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⏰ Última atualização: Sep 02, 2017 ⏰

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