Talvez tenha sido um amor pueril de minha parte. Da outra, como poderia eu saber?
Foi numa quinta-feira que aconteceu. Ou em uma segunda. Sei que foi na hora do meu almoço. Nos encontramos, aconteceu e depois ainda voltei para o trabalho, meio anestesiado. Na hora não doeu tanto, veio com uma aceitação imediata do destino. Um tempo depois ela veio devagar, com agulhadas pontuais. O resto do dia, foi todo meio insosso.
Escutei " No surprises" do Radiohead, logo em seguida. Enquanto ainda conversávamos. Me lembro bem. Já escrevi sobre isso, mas parece que sempre se acha algo para se escrever. Mesmo com poucas pessoas lendo.
Fiquei mais calado do que o normal; mais taciturno. Isolei-me no quarto (algo em que realmente tenho talento nato). Existe uma certa beleza e poesia no ato de sentir-se triste. Se cria uma atmosfera reflexiva que dá profundidade à alma. A introspecção se confunde com momentos de sabedoria, onde enxergamos todos os problemas e pontos baixos da vida. O coração aperta e nos flagramos ouvindo músicas tristes, jogando a última pá de terra.
Sentei-me na cama, com os braços caídos em cima das coxas e deixando os olhos a olhar mas sem observar nada. O corpo se moveu sem que eu notasse. As mãos abriram a gaveta do criado mudo e de lá puxaram uma folha de caderno dobrada e até meio desbotada.
Os dedos desfizeram as dobraduras e os olhos esqueceram o nada e desviaram sua atenção às palavras escritas de caneta azul. Eram nomes de livros.
No rádio, os Beatles começaram a entoar uma canção chamada " Michelle". Acho que não é uma música que todo mundo se lembre quando pensa nos Beatles, mas a importância dela para mim é tão íntima que não ouso contar aqui. Contando, talvez a magia e o significado dela se dissipem até restar somente o esboço de uma bela cena; um senso de ridículo de um romance juvenil, cavado em terreno sem profundidade. Ainda ouço Beatles, ainda ouço The Smiths, mas sempre com um naco de decepção e raiva, que me dizem para não cair mais nessa. Pilantragem, manta ou carraspana?
Escrevi uma história uma vez, que de início era uma sonata de amor para dois, mas até o término, se tornou apenas uma melodia solitária. Nela eu falo de amor, coisas que senti, ficção sem mentira, pelo menos foi o que tentei. Há uma personagem que chamei de Afrodite que seria a personificação do amor; uma garota meio maluca de cabelos rosas, roupas coloridas e comportamento indecifrável; em seu rosto, veríamos traços de quem amamos, mesmo o rosto dela sendo completamente diferente.
Imaginei-a ao meu lado, me olhando, curiosa. Reconheceria no rosto dela traços que não a pertenciam. Ela tenta ler a folha em minhas mãos e os penduricalhos em seu pescoço balançam e criam um barulho equivalente à uma escola de samba.
- O que é isso? – Ela pergunta.
- Uma lista de livros.
- Essa letra é dela?
- Sim, eu havia emprestado um livro pra ela, então ela me deu essa lista dos livros dela, caso eu quisesse algum.
- Isso foi antes?
- Bem antes. O tempo ainda não era suficiente pra ela me achar complicado.
- Ouvi dizer que você tem todos os sintomas de um nerd.
- É? Quem te disse isso, a porra do Dráuzio Varella?
- Bom, não importa. Por que ainda guarda essa folha?
- Não sei. Talvez ache dramático.
- É fofo.
- É idiota.
- Não fala isso. É uma coisa legal ter certas histórias secretas a dois. É romântico.
- Não é romântico. Provavelmente só eu me lembro disso, então, nesse caso é patético.
- Você realmente é dramático. E sensível, não nos esqueçamos disso. Típico de pisciano.
- Não me venha com merdas de horóscopo.
- Não acredita em signos?
- Só se for dos cavaleiros do zodíaco.
- Você ainda fala com ela? Ainda são amigos?
- Amigos? Não sei, se somos, nunca seremos melhores amigos. A gente se fala de vez em quando, mas sabe como é, o tempo passa, distâncias aumentam, lugares novos se conhecem, experiências novas acontecem, pessoas novas vão surgindo. A gente se fala de vez em quando.
- Você fala de um jeito meio rancoroso. Você também teve experiências novas e conheceu novas pessoas.
- Pode até ser, mas sabe como é aquele ditado: O gramado no instagram dos outros sempre é mais verde.
- Ah meu caro, se você acredita em todas as imagens de redes sociais, você também está se iludindo e se enterrando de vez. Escuta, isso tudo vai passar. Depois você se apaixona de novo. Acontece.
- Cala a boca.
- Como é?
- Cala essa boca. É tudo mentira isso. Amor? Eu não sei que merda é essa. Eu cresci achando que era do jeito dos filmes, e à primeira vista é, depois é só ladeira abaixo. É só olhar em volta, as pessoas se cansam das outras, enjoam. Não importa a idade, ainda fazem merda, traem, transam com o vizinho ou com a vizinha! Conhecem alguém no trabalho que é mais interessante, ou na faculdade, ou dão em cima de alguém ou o caralho a quatro! Quer saber? Eu quero mais é que você vá a merda! Não existe maneira de eu querer me apaixonar de novo! Pra quê? Para os amigos dela me acharem estranho, e mesmo achando eles um bando de cuzões, eu ter que falar que eles são legais? Para eu ter que engolir minha ansiedade e ir em uma porrada de festas e ainda ter que lidar com o pai dela, que além de ser outro mané, me odeia? Ah qualé, José! Eu não quero provar nada pra mais ninguém! Não desse jeito! Eu... não quero me moldar pra conseguir que aquela pessoa goste de mim. Tudo isso me dá raiva! Tudo!
- Ah mermão, dá um tempo! Para de se fazer de vítima! Você nunca ouviu falar que nessas coisas você vai ter que abrir concessões? Não estou falando que é perfeito! Mas as coisas são assim! Você vê as coisas todas do seu lado! O mundo, meu filho, não é unilateral! Eu não vou a merda não! Por mais que você me renegue, por mais que me odeie, nós ainda vamos no encontrar, camarada. Se você, agora, quer o contrário, eu só lamento. Aliás, posso até ir à merda, mas nós vamos juntos.
Eu não digo mais nada.
- Escuta, até você se aceitar, vai doer.
- Fica quieto, Satanás.
- Eu não sou Satanás, eu sou o amor!!!
- Ah dá na mesma!
Eu vejo a letra dela na folha. A memória me traz o perfume e a textura da pele.
- Eu já vou embora, Evandro, mas antes me diz uma coisa. Quando você terminou aquela história e ela terminou de ler. Você se lembra do que ela perguntou?
Eu lembro, mas me calo.
- "Você tem algo pra falar pra mim? "
Eu relembro, mas ignoro.
- Você disse que não. Que talvez tivesse, mas que naquele momento não tinha mais.
O amor se aproximou e sussurrou.
- Por que você mentiu?
Estou só de novo, com a folha ainda nas mãos com os Beatles cantando. Sinto uma comiseração latente, pela minha própria pessoa. Talvez me arrependa. Talvez me arrependa de escrever isso.
Rasgo a folha em vários pedaços e os observo caírem no chão. Sinto ódio dos Beatles e desligo o rádio.
Acho que gosto mesmo de drama. Tanta coisa por um mísero primeiro namoro que nem durou tanto e nem foi tudo isso.
Mas mesmo assim, se me perguntarem se gosto de Beatles, responderei com toda a certeza do mundo:
- Eu prefiro o Raça Negra.
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Talvezes- Histórias desinteressantes de um anônimo ordinariamente comum.
FantasyEntre crises existenciais e cacos remendados do coração partido, eu existo. Assim como você, provavelmente, tenho sonhos, anseios e medos. Todos esses detalhes estão aqui. A minha vida não é nada demais, nada de diferente; a rotina rotineira feita d...