Capítulo 4 - A Menina Triste

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   Zelda estava sentada numa poltrona estampada na sala onde a sra. Barden descansava e reunia-se com os demais empregados. Aguardava a chefe das empregadas terminar de servir o chá com exagerada demora, como quem faz suspense, sendo irritante demais para o gosto da jovem.

- Um cubo ou dois? - a empregada perguntou.

 - Dois... - Zelda tinha vontade de enfiar os cubos junto com o chá através da goela da mulher.

 Depois de entregar a xícara nas mãos da jovem governanta a mulher finalmente sentou, fazendo sinal de que sossegaria e começaria a falar.

- Zelda, querida. Primeiramente gostaria de pedir-lhe desculpas em nome de Lorde Peterson. Imagino que compreenda os motivos dele para ser um homem tão...irritadiço. O patrão é um homem solitário, desacostumado a lidar com pessoas.

- Sra. Barden, perdoe-me. Sei que tudo o que aconteceu com milorde é muito triste sim, mas não imagino a relação que isso tem com a total falta de educação dele. Afinal, nenhum de nós é culpado por seus infortúnios, não é verdade?

- Certamente que não senhorita, mas ele usa esta tática de nos afastar para privar-se de uma possível humilhação...ele afastou inclusive os pais e a irmã...

 Zelda permaneceu em silêncio. Talvez devesse considerar que o homem realmente sofria. Tinha vergonha de sua condição e do abandono sofrido por parte da esposa. Algo totalmente justificável devido a insistência da sociedade londrina em julgar a vida das pessoas sem terem o menor direito. O homem sentia-se encurralado e temeroso. Certamente por isso havia dispensado a maioria dos empregados e se isolado em uma propriedade rural como aquela.

- Sim, sra. Barden. Eu posso compreender seu patrão, mas certamente não o perdoarei! Acho que se ele sente algum arrependimento tem que me procurar pessoalmente para desculpar-se.

 O rosto da idosa adquiriu uma expressão engraçada, como quem identifica a gracinha de uma criança mimada.

- Tudo bem Zelda, mas isso pode demorar bastante.

- Não se preocupe, sra. Barden. Eu posso esperar bastante! Aparentemente eu já fui readmitida sem nem ao menos ter saído daqui.

- Oh sim, isso! Já ia me esquecendo! Milorde concordou em dar-lhe outra chance. Aparentemente a pequena Cora teve algo a ver com isso! A mocinha ficou realmente impressionada com a srta., mesmo com o pouquíssimo tempo que passaram juntos.

 Zelda deu um sorriso amarelo. Gostaria muito de expressar para a mais velha seu desagrado quanto o patrão "dar outra chance", mas sentiu que deveria ser grata pela oportunidade de ficar e poder ajudar financeiramente a família com o bom salário que lhe era oferecido.

- Pois bem sra. Barden, eu fico. Não suportaria viver com o estigma de ter feito Coraline chorar!

 A mulher pareceu satisfeita. Estendeu a mão, que Zelda prontamente apertou.

 Tentaria ao máximo não provocar a ira do já sensível lorde Peterson, o que seria difícil. Seu pai sempre argumentava o quanto ela tinha talento para criar confusão.


    Naquele mesmo dia a governanta finalmente iniciou os trabalhos com a pequena Cora. A menina foi iniciada nos preceitos básicos de etiqueta e francês, também dando suas primeiras dedilhadas no piano. Zelda lembrou-e de si mesma durante a infância, quando primeiramente sentava no banquinho ao lado do pai, aprendendo as primeiras notas, mas logo quando mais velha levava a cantoria das missas de domingo, com os dedos ágeis retirando das teclas melodias alegres de louvor.

 A tarde, as duas descansavam enquanto Zelda lia para a menina sobre uma manta estendida debaixo de um pessegueiro alto de galhos espalhados e retorcidos.

- ...e os dois viveram felizes para sempre. Fim!

- Isso é mentira! - Cora protestou, vigorosamente.

- Porque você acha isso, Coraline?

- Meus pais se odeiam. Não tiveram final feliz...

- Você tem contato com sua mãe, Cora? Quero dizer, ela vem lhe visitar?

 A menina balançou a cabeça, em negativa.

- Eu só conheço minha mãe por fotografia...ela nunca quis vir me visitar. Muriel diz que minha mãe detesta meu pai.

 Zelda tinha que dar um jeito nos comentários inconvenientes de Muriel de uma vez por todas!

- Isso não é verdade, anjinho. As vezes o amor acaba, mas isso não quer dizer que duas pessoas se odeiam. Apenas não querem mais morar juntas.

- Então, foi isso que te falei. "Felizes para sempre" é mentira! As vezes as pessoas não conseguem mais viver juntas e brigam muito, como minha mãe e meu pai.

 Zelda não tinha palavras para contestar isto. Estava apenas revoltada com as atitudes de Muriel acerca da menina. A empregada parecia estar sempre enchendo a cabeça da pequena com minhocas e isto certamente não era saudável.

- Seu pai vai ser feliz, Cora. Se ele mesmo se permitir. O que eu quero dizer é que ele deve aprender a deixar o passado para trás. As coisas tristes só nos incomodam se permitirmos. Devemos estufar o peito e dizer bem alto: COISAS RUINS NÃO ME ASSUSTAM!

 A menina ficou surpresa com o grito repentino da tutora, mas logo encheu os pequenos pulmões de ar e gritou com todas as suas forças.

- COISAS RUINS NÃO ME ASSUSTAM! EU SOU CORAJOSA!

- Isso mesmo, Coraline! Você é muito corajosa! MUITO CORAJOSA!!!!

 A menina riu, divertida. 

 Sua tutora já havia lhe conquistado a confiança de uma forma que ninguém nunca fora capaz.


    Após as lições da tarde Emma levou Cora para se preparar para o jantar, deixando Zelda com tempo livre.

 A jovem sentou-se numa poltrona de vime com almofadas forradas na sala principal da casa. Como uma criada de alto posto tinha permissão para isso. Não podia evitar de pensar em como devia ser triste para Julian passar todo aquele tempo enclausurado. Toda vida do homem parecia resumir-se àquele quarto! Certamente o homem estava perdendo todos os bons momentos de convivência com a filha.

 Uma batida na porta tirou-a de seus devaneios.

- Eu atendo, sra. Barden! - ela falou enquanto dirigia-se até a entrada.

 Ao abrir a porta deu de cara com um homem já na casa dos cinquenta anos, olhos azuis escuro e com um bigode escovado muito bem cuidado. O homem tinha uma expressão severa no rosto. Carregava consigo uma elegante bengala

- Pois não? - ela perguntou.

 O homem pareceu surpreso com Zelda. Após examiná-la com curiosidade de cima a baixo, fez um educado gesto com a cabeça, retirando a cartola e exibindo a careca reluzente

- Boa tarde, senhorita. Sou lorde Alexander Robertson. Lorde Peterson me espera para uma...reunião.

 Zelda estranhou muito isso, mas nada comentou. Deu espaço para que o homem passasse.

- Lorde Peterson está...

- Sim, minha jovem. No lugar de sempre, não é? - o homem a interrompeu, com um sorriso amistoso que contradizia totalmente sua expressão inicial.

- Isso mesmo, milorde.

 Lorde Robertson entrou na casa e foi direto para o cômodo dos fundos, onde se encontrava a "cripta" de seu patrão monstruoso.

 Ela não soube dizer o porque, mas algo neste homem não estava certo.




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