— Você... Na sua idade... Garoto... Como que vou dizer... Você está apaixonado, é? — e se levantou, aprontou e agachou de novo. Com dificuldade, deu soquinhos amigáveis no ombro do adolescente. — Larga a caneta, vai — e olhou para os ponteiros no relógio de pulso, numa gargalhada arrastada. — Seu tempo acabou. Preciso chegar em casa. Amélia, você a conhece, minha filhinha, não aguenta mais o próprio coelho e me pediu ajuda agorinha pra alimentar o bicho...
— Mas.
O semblante não conseguiu disfarçar o tanto que deixou a distração invadir. Nem se lembrou de enfatizar a entonação do "mas", que dirá do verdadeiro fato de ter se sentido incomodado ou de argumentar a favor. E depois retornou a si. Usou a primeira frase que conseguia encontrar ao longo da viagem que tinha dado apenas reparando fixamente na outra extremidade do quarto, onde ficavam amontoados os pertences de menor tamanho e maior valor sentimental. Era difícil abrir a janela e enxergá-los como é difícil contemplar a lua e não confundir seu movimento brando e lento com a dança alvoroçada das nuvens ao redor. Um desafio. Ninguém mais competiria com ele, isso era o que achava. Ninguém mais iria querer, isso era o que esperava.
— O coelho já não tinha morrido, o...
— Humberto? Sim, esse morreu.
— Pensava que fosse Augusto, esse que morreu.
A fome assolando a humanidade, o medo me assolando (assolando a consciência de Peter)... E "Ah, garoto... não sou pago para deixar gente estranha mais estranha ainda. Larga de falar de coelhos!" foi a única despedida de que Reginaldo fez questão, arrastando o bom-humor de um paciente não de um amigo o sucesso de uma consulta não de uma conversa sem fins monetários a pontuação a separação o isolamento desaparecendo tudo ao mesmo tempo e quase misturado mas misturado não é suficiente pra estar junto.
Talvez a decepção e a indisposição — respectiva e ordenadamente e explodindo a mente — estivessem misturadas dentro de um cômodo que aparentava ser, de quebra, demasiadamente mórbido. Mórbido? Mórbido, é a palavra que Peter usaria depois de conhecer quem o estimulou a usá-la; estavam as duas emoções primeiramente citadas tão misturadas, mas não juntas, não se unindo, não se completando, não tendenciadas, não combinadas.
Ele a ouvia toda eufórica e desenfreada, racional e vagarosa. Extremista. Como costumava ser a voz que mais variava de todas as vozes que ele já tinha ouvido, imprevisível e ruidosa, nem podia decifrar em qual tom era revelada no seu olhar determinante. Bem aos ouvidos, o som distorcido pelo coração sofrendo erosão em seu peito. Era tudo daquilo, e era, e era, e era, e seria.
"E se o misturado é impensável pra ser suficientemente um junto... por que você acha que o QUASE misturado mas ATÉ que misturado seria? Sorvete, é disso que gosto. Quando misturamos dois sabores, ficam os dois ali, evidentemente mistos, juntos, se destacando um do outro mas se completando no sabor, fazendo assim: com que a gente saiba muito bem decifrar se a combinação presta ou não presta. Prestou? Não prestou? É combinação. Não é bem a gente."
Não são as pedras que sofrem erosão? Pedra é um termo correto? Não são as rochas as mais velhas, ou nada se relaciona com idade, pura nomenclatura? Minha alma é oriental. Minha alma é vencida, é ultrapassada, é de relevo gasto, é notório que eu vendi uma raridade ao invés de uma especiaria.
Peter, o menino das nuvens, tinha se apaixonado por todos os olhos castanhos numa manhã ensolarada de janeiro, vindo brilhantes no meio da vista enevoada às dez horas e dez minutos da manhã. Por quaisquer olhos castanhos numa manhã ensolarada de janeiro que o cruzassem brilhantes às dez horas e dez minutos da manhã, que ele ignorasse e deixasse ir... que acabasse inclinado de novo no paredão de cimento enquanto massageava o dorso da mão esquerda com a direita. Peter, o menino das nuvens, tinha se apaixonado por todas as cartas numa manhã acinzentada de julho. Por quaisquer papéis que simplesmente o endereçassem, sendo por seu nome nomeados os versos, naquela época. Peter, o menino das nuvens, tinha se apaixonado pelas metáforas, delas até as realidades: sem exceção para o que surtia efeito de ambas JUNTAS (não misturadas de menos ou de mais ou de metade, quem vai saber). Por quaisquer, de novo. Peter, o menino das nuvens, até se apaixonar pelas nuvens, tinha se apaixonado por todos os fios de cabelo que permaneciam mais escuros na luz do sol de inverno e que, ele sabia, só viriam a mudar quase totalmente de tom no verão. Naturalmente, como as árvores fazem fotossíntese. Naturalmente, como ignorava as faíscas castanhas. E tinha se apaixonado, até se apaixonar pelas nuvens, por pessoas que tinham pés tão contrastados um do outro que pareciam fazer parte cada um de um corpo, e que andavam meio longe. Quaisquer pés dos quais só tomasse conhecimento por abaixar o olhar na mínima das possibilidades de desviá-lo. Ele tinha se apaixonado, até se apaixonar por se apaixonar pelas nuvens, por mãos que se entrelaçavam uma à outra enquanto se firmavam e depois deslizavam num paredão de cimento, arranhando e deixando que caíssem as pedrinhas no chão predestinado a virar um tapete de cimento (descascado) também. Suas unhas afiadas viriam o machucar depois, será? Sonhou que sim. Tinha se apaixonado, até se viciar perdidamente na paixão que sentia pelas nuvens do céu que cobria a cabeça dela, por cabeças que eram cobertas pelo céu que guardava as nuvens apaixonantes nas quais se viciaria. Tinha se apaixonado por tudo no Universo que ficava claramente naquela posição, tão aquecido. E como ele se deliciava em passar os dedos por cada fio que naturalmente já mudava de cor. No silêncio, no seu peito um esconderijo tão fundo que era preciso cavar um buraco de certeza pra encontrar. Apaixonado, finalmente, até por marcas meteorológicas de expressão. Foi que prontamente deixou os quaisquer uma vez ou outra, que prontamente se apaixonou por QUEM era dono deles. Peter, o Peter apaixonado, virando o menino das nuvens tão rápido quanto um lampejo fosforescente pode cruzar o oceano às madrugadas, confundido com céu pelo horizonte oculto. Se repentinamente mudam para a cor castanha os lampejos, é analogia na vera. Se não...
— Bom dia — ela ria, deitando o pescoço no paredão de cimento como ele fez. Não só fez, como já podia afirmar que fizera, que faria, que fará. Tudo pela repetição com que se via fazendo e com que ela mesma vinha, como ele repetia, imitando. — Você deve ser bastante religioso, certo? Eu sou ateia. Mas espero que seu... queseuAltíssimocorres...ponda.
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Todas as Nuvens e o Legista (e todos os Legistas nas Nuvens)
Short StoryEle escrevia, e ele era um legista enquanto escrevia: não enquanto descrito. Peter chamava de nuvens tudo aquilo que queria descobrir.