Três sílabas. Sete letras. Castigo.
E o que mais o castigava no universo: não ter permissão para ver o céu.
Um menino normal receberia castigos de meninos normais. Evidente.
Até o incidente, não gostava muito de tecnologia, exceto por seus videogames-de-horários-vagos-chamados-assim-só-pra-ter-um-uso-porque-todos-os-horários-de-um-Peter-devem-funcionar-como-vagos. Um adulto, tradicionalmente infeliz-moralista, provavelmente encrencaria, sugerindo louça pra lavar nos primeiros minutos do domingo, o famoso dia do nada. Sem hífen, porque acredito que hífen seja alguma coisa, e domingo não tem nem isso. Evidente. Usava as redes sociais com a frequência que um urso escolhe despertar e apostar corrida no meio da hibernação; a TV não o chamava tanto a atenção já ia fazer alguns meses, seu programa favorito fora injustamente cancelado... Bem, sua mãe tinha as revistas e seu pai, uns jornais fedidos monótonos, além dos livros tediosos da escola, que eram tudo o que cada pessoa na casa fazia questão de ler quando em casa. O menino das nuvens adorava ler, sim. (Não em casa.)
Na última quinta-feira que precedeu o castigo, o trajeto costumeiro depois da escola (que ainda era livre) recebeu uma parada nova: não, não era a biblioteca municipal. Diriam os vizinhos, era só o moleque doido, o da meleca rosa na cabeça de sempre, que dobrou na esquina ao invés de seguir direto a fim de fazer uma caminhada mais longa e reparar o céu nebuloso. Intrigante. Meio escurecido. Que horas são? Onde parei? A luz âmbar atravessava os buracos nas nuvens, e voltava, e saía, e voltava, e saía, e voltava, e uma cabeçada no poste.
Peter xingou relativamente alto, e repreendeu a si mesmo, "consertando" a cara o máximo que pôde. Mas ei!, não tinha sido tão alto assim para que ficasse ecoando no meio da rua, tinha? Num estrépito, ele aguçou mais os ouvidos.
Foi inteligente mesmo, eu. Para. De. Falar. Com. Sua. Cabeça.
O som vinha do quintal à frente, onde alguém estava de mudança. Havia dois caminhões de porte médio. Logo em volta, um punhado de crianças, animais de estimação e infelizes-moralistas impacientes nos calcanhares dos dois primeiros.
Desviou o olhar nada disfarçado e sorriu o sorriso menos feliz que pôde, fingindo educação, na direção da senhora idosa que o disse para tomar mais cuidado. Ela seguiu andando, mancando, sem meia-volta, demonstrando frieza. Óbvio que queria espiar também. Não se dando o trabalho de procurar tempo para refletir ou chamá-la de volta, ele abaixou o olhar.
Assim, a avistou.
Uma capa dura de livro velho, arremessada com furor no latão de lixo. Qualquer um que não estivesse assistindo a ela segundos antes, rasgando pelo ar, diria que seria impossível acertarem exatamente no latão. Sem o livro... só a capa no topo de um monte de outros objetos defeituosos.
Prendeu a respiração e pegou. Havia uma coisa escrita na capa, uma dedicação em letras rechonchudas e tremidas. Peter fechou os olhos, dessa vez nem falou consigo mesmo. Nem censurou o que pretendia falar consigo mesmo.
O pior desvio é de quem se pressiona muito a não se desviar... foi exatamente o que ele leu, pressionando a capa contra o peito sem que ninguém soubesse, no seu décimo quarto aniversário... mesmo que não fosse a mensagem real — a qual ele jamais teria tempo para decifrar ali, enquanto espiava a mudança, ainda aos dez — e também sussurrou, com os olhos fechados.
Ele sentia muito a falta dela. Quintas-feiras e mais quintas-feiras passadas, ele sentiria muito a falta dela, e não fez nada sobre isso. Não fez nada para anular o futuro do pretérito. E se odiava arduamente por refletir sobre tempos verbais e seus usos ao invés de se sentir devidamente culpado, porque o nada continuava sendo tão nada quanto o nada do dia em que não fez nada sobre isso. O pior, o mais alarmante, era que o tal do isso mascarava a maior das dores que o menino das nuvens já sentiu na vida toda.
A maior.
A(maior).
Am(aior).
Am(ai)or.
Amor(ai).
Porque doía no presente.
***
— Que dia é hoje, pai? — perguntou o garoto com uma capa velha de livro na mão e o rosto suado pelo tanto que correu sem cessar até alcançar o costumeiro portão imitador do costumeiro trajeto desviado. Seu desejo era que coisas costumeiras não irritassem tanto como aquele portão que permaneceria portão até ele completar 87 anos, quem é que sabe? Porque o trajeto ele podia encurtar, desviar, ignorar. O que todo mundo sabia era que ninguém se importava com o portão deixar de ser portão ou não, era costumeiro. Era como o próprio garoto se sentia: cenário aos grandes acontecimentos dos outros. Talvez tenha sido pretexto para o que foi fazer em seguida.
Começou que, antes de ouvir a resposta, sentiu uma pontada forte no peito. Largou a capa, ficou espalhada pelo chão. Sua mãe estava fora... sem risco de nada ser varrido dali. Seu pai e os jornais, os jornais, o café, os jornais. Mais nada o tiraria da frente daquilo até as oito, nem uma olhadela na direção do chão. Que se dane a capa. Que se dane Onédio. Mas era a primeira vez que Peter "mencionava" o apelido sabendo estar a bastante quilômetros de distância dela, e até ali até que tinha confiado nas forças da conspiração universal. Que se dane sua letra tremida, Amélia, eu gosto dela desse jeito. E aí se culpou por ter mentido, porque a caligrafia era realmente péssima. E olha que nem foi tão mentira assim. Te juro. Calma, não juro não. Universo, não transmita isso a ela. A você. Que seja. E lá vinha a pontada no peito de novo, bem acompanhada pela insanidade brotando.
Ele perguntaria a Amélia, na próxima vez em que a visse, se o Universo tinha feito direito o que prometeu silenciosamente.
Ele soube que se tratava de uma promessa quando inclinou o pescoço e se pôs nas pontas dos pés. Era o céu. Ele estaria proibido de vê-lo.
O branco (bem menos branco do que já tinha sido naquele dia) surgindo lá no fim, aliando-se à escuridão suave pelo resto do espaço, era o que o mantinha esperançoso sobre encontrá-la. Amélia também estava no fim de alguma coisa agora. Também era o seu destino, a solução pela qual ele encontraria uma forma de alcançar o mais próximo de claro que um céu já escurecido continha: as nuvens espessas se espalhando tranquilamente e os pequenos raiozinhos luminosos de fim de cenário, tão mais reluzentes que cada lâmpada começando a ser acesa pela rua que sustentava a imensidão. O cenário monopolizado por ele, era ele quem enxergava dessa vez. Zero monotonia. Mesmo que fossem o fim, as nuvens estavam lá em cima. Ela estava lá em cima. Ele, lá embaixo. O verdadeiro certo (mesmo aceitando que nem a verdade nem o certo realmente existem no geral e com plena certeza que o real partilha do mesmo raciocínio, recordando que este tem todo o direito de mudar constantemente de conceito), ter os pés no chão sobre a constatação imediata de nunca poder chegar voando até ela, que dirá puxar sua mão e voar junto com ela e acenar a todos os vizinhos que reclamavam de seus hábitos estranhos de bem acima deles (esse seria só o início das inacreditáveis e incomparáveis coisas que faria se por um acaso tivesse a oportunidade de agarrar a mão de quem o fazia sentir como se uma parte da superfície ainda guardasse mais que um pedaço de nuvem que agora ele precisava unir e ter de volta), mas ter os pés flutuando logo em seguida na intenção de chegar mais rápido e acelerar a beleza da ideia. Era tudo uma promessa do Universo: que haveria uma conexão dali em diante; antes de dormir, depois de dormir ou dormindo ou sonhando, quem sabe... a imagem de tudo que sentisse e dissesse por ela acabaria se projetando aos lampejos castanhos vividamente.
Mas havia uma condição, o céu precisava da sua parte respeitada.
Fazer dele um cenário próprio todas as noites. Não era um desafio, Peter jamais esqueceria rapidamente de uma promessa feita ao lugar onde as nuvens ficavam expostas. Quem recusaria? E poder fazer parte de algum esquema celestial o trazia uma certa euforia.
Ele realmente acreditava que, se não cumprisse sua parte, Amélia seria arrancada de sua cabeça. Não teria nenhum direito de pensar nela. Não mereceria. Por dias, anos, semanas, meses. O tempo que fosse consumiria as poucas formas que sua mente ingênua usaria como válvula de escape à saudade.
E houve o castigo.
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Todas as Nuvens e o Legista (e todos os Legistas nas Nuvens)
Short StoryEle escrevia, e ele era um legista enquanto escrevia: não enquanto descrito. Peter chamava de nuvens tudo aquilo que queria descobrir.