Viu, Onédio?

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Por que ocasionalmente acelerava conscientemente o monólogo? Por que ocasionalmente parava de falar? Ele nunca a cortava. O silêncio era tanto que era até cortante, isso sim. O vento de inverno também, o de verão também, o de primavera também, o de outono também. Porque de manhã era quando sentiam o tempo realmente fazendo seu trabalho de desencadear a suposta mudança climática ressaltada pela alternância entre as mesmas e jamais mudadas estações.

O queixo levantado para o céu nunca se mexeria se não houvesse um "se não houvesse".

Se não houvesse o queixo finalmente mexendo, ainda apontado para o céu.

Nunca disse Bom dia pra ninguém, nem Boa tarde e nem Boa noite. Nem pros meus pais, e não é porque não é Bom qualquer um deles. Bem, não necessariamente é bom, mas digo que essa jamais seria a razão pela qual deixo de dizer: a verdadeira é que nunca me importei se é dia, ou se é tarde, ou se é noite. Não ligava, não me interessava por saldar alguém usando o tempo presente. É, ela iria embora alguma hora. Ela não teria que ir embora se eu nunca a saldasse, se nunca abrisse a porta pra ela. Ir lá e descobrir por que as pessoas saldavam umas às outras, num paredão de cimento onde minha cabeça pendia ao invés de relaxar! Mas ainda é um paredão, paredão não abre nem fecha nem nada. Vai lá e descobre, vai lá e descobre, vai lá e descobre e eu fui lá e descobri parado. Pretexto.

— Bom dia, Luce. — Os dedos das mãos desenhando um perfeito coração no bolso da calça. Perfeito, com ventrículos e tudo, com cavidades e tudo, com miocárdio e tudo, com artérias e veias... muito mais sangue do que coração.

Isso ela dizia pra ele: um coração perfeito é muito mais sangue do que coração. Prefiro ter o imperfeito. E ele insistia em não metaforizar nada, por enquanto.

— Meu nome não é Luce. — Ela se aproximou e retomou o equilíbrio desajeitadamente, agarrando o nada. Não corou olhando fixamente as pedrinhas no chão, não corou quando caiu e ralou o joelho no cimento gelado.

E não é um bom dia, Peter reprimiu.

— Viu? — Ainda mais envergonhado e receoso do que ela, a oferecendo ajuda sem saber como ajudar. Ela não ria. Na realidade, ele nem sabia como oferecer ajuda antes de efetivamente fazê-lo. — Viu só, Luce.

Tinha esperanças de que, toda vez que ela ouvisse o nome errado, resolvesse sorrir errado daquele jeito pra ele. Sorriu errado só até chegarem na enfermaria e a enfermeira censurar o menino por tentar se explicar.

Afinal, foi a última vez em que precisou chamá-la assim.

A enfermeira, sem dúvida, tinha a caligrafia achatada tal qual sua postura. Bastava uma olhadela para chegar a esse pensamento, que martelava. Pediu para que as crianças assinassem um tipo de bilhete a seus responsáveis, uma advertência pelas mais de duas aulas perdidas e por um suposto machucado acidental aparecer no joelho de uma aluna, quando não havia paredão de cimento nenhum no interior do terreno escolar. As letras garrafais da menina eram tremidas e rechonchudas demais, como se forçasse a própria mão a seguir em linha reta e falhasse. O pior desvio é de quem se pressiona muito a não se desviar... Ao longo do que o amante das nuvens corrigia cada traço que lia, entendeu que se chamava ONÉDIO? Não, deixa, o A dela parece um O e o M parece um N e o L parece um D.

Amélia, Amélia, Amélia. Então quantos coelhos vocês matam por ano?

Viu, Onédio?

Era depois da aula. Peter não podia ir andando de volta até chegar em casa (a qual ficava três ou quatro quadras antes dali) desde a semana anterior. Mais precisamente, desde que os pais souberam que andava fugindo das "responsabilidades" e presenciando acidentes no joelho de uma menina. Lutava contra a saudade de quando a caminhada significava uns bons doze, treze, quatorze, quinze minutos (e ele caminha devagar de propósito) de diversão e centavos no bolso, suficientes para comprar umas balas na primeira esquina que visse em vez de pegar o ônibus. A desculpa? A de sempre — engarrafamento — mesmo quando a cidade andava aparentemente abandonada e deserta na transição da manhã para a tarde pelo motivo de todos os moradores estarem com medo uns dos outros. Chegou a esse ponto, lamentavelmente. Nada o satisfaria mais do que aquela breve amostra grátis de autonomia. De qualquer jeito, preferia lutar contra dali em diante. Agora era responsável, se esforçava dentro do mínimo: de sua cabeça. Afinal, faltava pouco para os onze anos.

Centenas e centenas de ontens depois, ninguém mais fazia tanto escândalo por ter chegado naquele ponto, nem a consciência de Peter. Por que é que aquele cara ali anda falando no celular? Que idiota. Ele deveria ter medo. Eu teria. Ironicamente, a violência, o colesterol alto ou simplesmente a preocupação que seus pais ou Reginaldo tinham com ele nunca foram as principais razões para que não pudesse voltar sozinho depois da aula. Semanas após a queima de um transporte público cá ou lá, o alvoroço era interrompido, e os estupros, assassinatos e roubos noticiados, facilmente banalizados. Como se não bastasse, o menino das nuvens vinha estando leve e saudável na sua dieta de responsabilidade (embora um tantinho abaixo do peso). Um narrador ou narradora descritivo(a), fazendo o seu melhor numa dose de conotação, o julgaria como "prestes a ser carregado pelo vento".

Ele adoraria ser efetivamente carregado pelo vento. Chegamos ao ponto:

Diferente de todos os seus colegas de classe (até de Amélia, que era a diferença em pessoa), sentia prazer em voltar a pé, embaixo do sol bem quente, em pleno inverno que funcionava como verão. Ou na primavera, outono que também funcionavam como verão. Combinemos que, à tarde, quase tudo no Rio de Janeiro funcionava como verão, a não ser que algo muito estranho assolasse a humanidade repentinamente... Peter não se preocupava em gastar a sola dos sapatos, andar tanto até as pernas doerem. Melhor do que observar tudo atrás de um vidro. Usar um casaco e fritar sob o céu e a claridade infinitos, é preciso ser muito mais corajoso. Sentia prazer em encontrar desenhos nas nuvens e, se o céu fosse aquele bem límpido, sem rastro algum de nuvem, ele mesmo fazia papel de uma. Pra isso, precisaria estar o mais perto possível: estar perto do céu, no seu ponto de vista singular, era se aproximar, também, das pessoas ao redor. O que, aliás, fazia dele ainda mais corajoso, visto que estas tinham medo umas das outras.

Todas as Nuvens e o Legista (e todos os Legistas nas Nuvens)Onde histórias criam vida. Descubra agora