Que absurdo, consciência! Era disso que Peter mais queria ser feito: dos pontos de vista de alguém que ele não via havia cinco anos. Triste era avaliar que a escolha não se fundamentava em impressioná-la ou trazê-la de volta (era impossível). Seus cabelos bagunçados, os olhos inchados, a boca seca, a pele suada, as bochechas estufadas, inclusive os órgãos mais internos, mais vitais e mais errôneos: toda parte dele queria saber não esconder segredos dos outros como nunca esconderia dela.
Nuvens não passaram por sua cabeça. Céus não passaram por sua cabeça. Sóis não passaram por sua cabeça. Estava sob um teto, e não ao ar livre.
Poderia (e queria) ser todo reduzido a um mero ponto de vista... e logo dela que, sem sombra de dúvida, escolheria ser feita dos próprios segredos.
Pensando bem... sem luz, sem sombra, certo? Com dúvida. Quem sabe isso tudo só não era uma forma que ela procurava de tentar guardar mais um segredo?
Quando os minutos já tinham passado e a resposta já escorria a toda censura pelos seus dedos, Peter estava cansado. Exausto. Entregaria assim que possível, ainda naquele dia, à professora. Só havia um tempo de aula de filosofia, mas ele não esperaria tanto (quase uma semana) até o próximo. Não era porque estava ansioso ou realmente se importava com a pontualidade, mas sim porque não gostava de carregar muito peso e cadernos na mochila, só espalhava desengonçadamente todas as suas ideias espontâneas com as redações, trabalhos escritos e propostas escolares pelo quarto. Não encontraria, não se lembraria, não faria questão daquilo mais tarde, ainda que anotasse numa agenda (porque não carregaria a agenda por dias suficientes), a menos que anotasse num bilhete da escrivaninha que precisava abrir a agenda e ler os lembretes dela, e sem dúvida o bilhete voaria dali, já que a escrivaninha ficava muito perto da janela e ventava à tarde, naquela época do ano. Tudo conspirava a favor do desinteresse do menino das nuvens. Tudo o fazia totalmente viajado. Ou talvez ele e suas viagens inventassem os pretextos na intenção de existirem.
Caminhava angustiado, com dois conjuntos de crises existenciais frequentes em cada bolso da calça (aquela calça tinha cinco bolsos, contando o minúsculo onde antigamente ficavam os "relógios de bolso"). Mas os pássaros, as pedrinhas na calçada e no muro, os carros, os fios no poste e a grama esverdeada não recebiam a angústia dele como recebiam o calor do sol por trás da camada densa de branco no céu. Ele vestia uma máscara mais densa que aquele branco. A camada de esperança.
E não, ele não podia vestir esperança como vestia um par de meias com listras azuis. Ele podia vestir esperança como as lágrimas que desciam seu rosto, que não eram roupa, tão frequentes quanto as meias. Não era sobre vestir, de fato, mas de algo que o envolvesse, ou que envolvesse uma parte dele. Envolvia seu peito. Aconchegava-se no seu peito quando a dor era branda, até convidativa (trazendo todas aquelas reflexões relaxantes consigo, claro). Porque sabia que dali agravava. Da pior das maneiras, agravava. Era como mecanizar seus passos. E as crises existenciais fugiriam dos bolsos. Então, socorria a si mesmo. Só corria.
Se eu pudesse escolher ser qualquer coisa antes de já ter sido, escolheria ser a esperança nas pessoas. Escolheria ser o que as faz acordar de manhã. O primeiro pensamento delas antes de tomarem coragem pra fazer algo que as deixa fora de si, sem palavras, receosas, com a sensação de que é o último momento de suas vidas. O amor delas, a família delas, a música que mais liberta a alma delas, o objetivo delas pra daqui a vinte e cinco anos, o desejo delas por outras pessoas, as inexplicações delas, suas dívidas a serem pagas, suas possibilidades impossíveis, suas dúvidas, seus porquês, suas críticas, seus problemas, suas dores, suas lutas, seus defeitos, seus e-mails, suas futilidades, suas promessas, suas mentiras, suas listas, suas agendas, seus sonhos mais profundos, seus eixos, seus tratamentos, seus exames, seus testes, suas notas, seus valores, as justificativas delas a tudo isso que eu esqueci, mas logo lembrei: suas refeições diárias, seus banhos de sol, suas viagens, seus medos, suas virtudes, suas excentricidades, suas verdades, seus segredos e milhares de "isso" jamais citados ou que jamais tenham passado pela minha cabeça, suas análises e concepções, suas opiniões, suas lembranças e, sim, seus esquecimentos. Pessoas não param. Elas têm milhares de razões, mas param? Acorde às seis da manhã de uma segunda-feira, abra as cortinas o máximo que puder, coloque a cabeça pra fora da janela e me responda se param. Elas não param. Elas nunca pararam. Elas têm milhares de razões, mas suas razões de parar são as mesmas pelas quais continuam. Porque o lado bom de tudo que não tem lado bom nenhum é construir um. Reconstruir, se já houve. Desconstruir o ruim, se não é o maior dos lados, e se existirem lados enfim. Arrependimentos são que nem árvores, já experientes, já maiores do que ontem, oferecendo sombra convidativa a quem passa. Desde que eles passem como quem passa, tudo bem, e então não se tornam o eixo. Eu quase fiz isso agora: o mundo é muito maior do que as pessoas ou a destruição figurada que elas causam. Logo, é o que há nelas. É a incógnita perfeita. É a esperança de que exista algo habitável por aí, que nasceu em alguém, que nos leva à amplitude. Mas não quero que pensem que estou afirmando que a existência de tudo é fundamentada na interpretação que existe dela.
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Todas as Nuvens e o Legista (e todos os Legistas nas Nuvens)
Storie breviEle escrevia, e ele era um legista enquanto escrevia: não enquanto descrito. Peter chamava de nuvens tudo aquilo que queria descobrir.