Capítulo 13 - Plano

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Somente sentia o vento bater no meu corpo mas eu não respondia. Eu me sentia gelado, meu estômago simplesmente não estava ali, era somente espaço vazio, um buraco dentro de mim. Minha cabeça doía demais e não sabia porque sentia ânsias de vômito que duravam por segundos, acabavam e voltavam com força total para repetir os atos. Abri os olhos, estava deitado na cama gigantesca e me deparei com a mulher de cabelos brancos me mostrando as mãos como Toivo naquela imagem, ela estava olhando para mim fixamente.
- Está bem?
Ainda não sabia em que realidade estava, tudo balançava como se eu tivesse em um barco.
- Minha cabeça - coloquei a mão na minha testa e senti um galo pulsando como um coração, e doia somente em encostar.
- Te encontramos deitado no chão com o livro do lado, o que aconteceu?
Tentando olhar para ela, haviam três mulheres uma do lado da outra, até se unirem e formar uma novamente.
- Eu pensei que estava delirando.
Ela franziu a testa.
- Por quê?
- Isso não parece real, nada disso. Eu sou o escolhido.
Ela sorriu.
- Então, você finalmente entendeu, que bom.
Ela virou a mão e um vitral se abriu, como por magia.
- O que você fez? - perguntei, querendo saber se eu não estava delirando de verdade.
- Esqueceu que eu controlo o ar? Eu empurrei o vitral e abri-o.
- Hum.
Ela parou de me lançar ventos e sentou do meu lado.
- Hietala, você veio da Terra dos Mortais, eu não sei como é a vida lá, ninguém deste palácio sabe. Mas, aqui nós somos mais do que acostumados com isso, ainda mais, nós precisamos disso. Eu não sei como seria a vida sem isso o que você... - suas mãos fizeram círculos no ar - acha incomum. Para nós, é completamente normal. Se são os nossos poderes que te deixou atônito, sinto muito, mas você...
- Eu sei, vou ter que aprender a dominar os quatro elementos.
Ela finalmente me olhou.
- Notei que leu o livro.
- Foi o que me fez cometer isso.
- O quê?
- Eu pensei que era tudo mentira, pensei que estava alucinado e comecei a me bater com o livro para acordar. Estou me sentindo um idiota.
Ela me fitou por uns segundos, abaixou a cabeça e fez que não.
- Hietala, tudo aqui é real. Isto não é um sonho. Você vai demorar para se acostumar, mas depois vai entender que este é o seu lugar.
Havia um tom de ignorância sutil em sua voz.
- Tudo bem.
O galo na minha cabeça começou a doer tanto que mal pude deixar os olhos abertos, fiz uma careta de dor e pressionei com a mão.
- Acalme-se, você já vai melhorar.
Abri os olhos com muito sacrifício e tive tempo de vê-la me fitando e dando atenção para o vitral aberto.
- Ah! Agora sim.
- O quê? - disse, sofridamente.
- A borboleta chegou.
Borboleta?
Ao me esforçar para ver, me deparei com uma borboleta azul entrando no quarto e vindo na minha direção.
- O que ela vai fazer?
- Hietala, somente tire a mão do seu ferimento.
Hesitante, tirei a mão da minha testa, temendo uma simples borboleta, mas o que este animal poderia fazer para piorar?
Ela chegou mais perto e encostou no meu galo, doeu por segundos, depois de uma sensação de dormência. Pensei que estava louco por ter visto que a borboleta provocou um lampejo na minha testa que durou menos de um minuto e depois se esgotou. Eu arregalei os olhos por perceber que não sentia mais dor nenhuma. Tateei a minha testa e não havia mais galo nenhum.
Ela sorriu para mim e perguntou:
- E então, como se sente?
- O que aconteceu? Onde a borboleta foi parar?
- O que aconteceu foi que ela se sacrificou para te curar, ela está dentro de você, e vai impedir que você se machuque por um tempo - eu me sentei na cama e me senti totalmente curado, sem nenhuma protuberância na minha testa. - Agora você acredita que não está sonhando? Crê que isto é real?
Pensei, isso poderia ser verdade, mas se eu não estivesse no meu "plano". Talvez eu realmente não estava em casa e nem tendo alucinações, pois eu me machuquei de verdade e não acordei no resort. É, talvez aquilo realmente fosse real.
Suspirei.
- Acho que sim.
Neste momento, a mulher loira irrompeu no quarto e me olhou com um certo desespero.
- Hietala! Voi Luoja*! - ela partiu para mim, me abraçou com uma força estranha para uma mulher, me soltou, ajeitou meu cabelo para trás e colocou a mão na minha testa várias vezes. - Está melhor? Está bem? O que aconteceu?
- Eu estou bem.
A mulher de cabelos brancos se levantou e nos olhou com certo despreso.
- Acalme-se, Kirsi, ele está vivo. Isto não é necessário.
- Não é necessário? Quanto tempo estamos esperando por ele, Sanna? Se algo acontecer com ele, não poderemos fazer mais nada!
Levantei as mãos na altura dos meus ombros.
- Eu estou bem.
Ela me olhou.
- Não está mentindo?
Fiz que não. Ela suspirou e me soltou.
- Então está certo. Vamos descer?
Assenti. Elas me ajudaram a sair da cama e seguimos para o corredor.
- As apresentações ficarão com Antti - disse a mulher de cabelos brancos, eu ainda não havia decorado o nome de todos. - Ele será o seu guia no plano.
Quando ela girou a cabeça para olhar para o caminho, me lembrei de quando li o livro e vi que eles eram animais, e não humanos. Os animais que vi quando estava com o homem-cavalo eram os dominadores, era difícil de entender, mas aceitava cada vez mais que não tinha como ser mentira. Ela tinha cabelos brancos porque era a águia, a loira era alta e esguia porque era a serpente, os outros dois homens um cavalo e um leão. A única coisa que pensava era como devia ser se eu pudesse me transformar em um animal. Voar deveria ser legal.
Kirsi cutucou meu ombro, eu a olhei.
- Me perdoe por ter lhe jogado água.
Eu sorri.
- Sem problemas, eu estava precisando - ela sorriu. - Por quanto tempo eu dormi?
Ela pensou por um segundo.
- Várias horas.
- Sério? Se pareceram minutos.
A claridade que entrava no palácio mostrava isso, já não era mais tão cedo. Ao descer as escadas, os homens estavam conversando no centro do pátio.
Antti me olhou, sorriu e veio até mim, o outro homem o seguiu.
- Está bem, Hietala?
- Sim, me chamem de Kalevi, por favor.
Ele deu de ombros.
- Tudo bem. Pode nos explicar o que aconteceu?
Disse para eles que li o livro e não me contentei com as respostas que estavam lá e o desespero que senti ao me deparar com as folhas em branco, comecei a me bater com o livro para acordar de uma suposta alucinação mas acabei desmaiando. O homem alto e magro começou a rir e gargalhar.
- Criança, isto é nada mais que a realidade. Você pertence a este lugar.
Suspirei.
- Estou vendo que sim.
Ele olhou para os meus pés e disse que me traria um par de sapatos, pois o mármore era muito gelado.
- Bom, fico feliz por estar os ajudando - disse, todos sorriram. - Mas, qual é a função de ser um escolhido de uma terra que ninguém vai ter o conhecimento?
- Não precisamos de conhecimento, Kalevi - disse Antti. - As pessoas aqui são pessoas boas, que não fizeram mal algum, só existimos para protegê-las, se esse plano não exitisse, provavelmente não estaríamos aqui.
- E por que existe Maa Toivo? E por que não conhecia antes?
- As pessoas precisam de descanso, elas trabalham duro, e não encontram o Paraíso quando morrem e acabam vagando em um lugar desconhecido, Maa Toivo serve para encobrir este lugar vago, e quando elas não querem mais ficar aqui, elas vêm até nós e solicitam mudança.
A porta estava aberta, e eu via que longe do palácio, haviam casas e fumaças subindo de chaminés, pessoas estavam ali.
- Eu li que essas pessoas que vivem aqui eram almas e se tornaram pessoas vivas de verdade. Como isto aconteceu?
O leão chegou com sapatos formais, pretos, brilhantes e com bico fino, eu os coloquei e eles serviram maravilhosamente nos meus pés, eram tão confortáveis que pareciam ser feitos de algodão. O homem-cavalo disse:
- Eu acho melhor darmos uma volta, você acabou de acordar e precisa de ar fresco.
- Como quiser.
Saímos do palácio e o ar puro, como eu nunca havia sentido antes, limpou até a poluição mais profunda dos meus pulmões, a grama tão verde e viva me dava uma sensação de pureza, aquelas terras, que agora me pertenciam, eram tão limpas e perfeitas que os olhos se deliciavam em notar tanta perfeição. Um grande lago com água corrente dividia o palácio de toda a civilização, e, meu Deus, como era azul este lago, eu podia distinguir as cores de todos os peixes que estavam lá de tão clara que a água era, se todo o plano era assim, era o próprio Paraíso.
- Venha comigo, Kalevi, vamos andar. Mais tarde eu te apresento o palácio.
- Tudo bem.
O céu estava ensolarado, porém, a temperatura estava ótima, eu nem estava incomodado com as roupas escuras e pesadas, tudo era simplesmente perfeito. Andamos para o lado do palácio, Antti olhava para tudo com ternura, com carinho que era visível em seus olhos.
- Você me perguntou como as almas se transformaram em pessoas vivas, certo?
- Certo.
- Tudo acontece neste plano se Toivo permitir, mas como ela não está aqui, nós tomamos conta de tudo agora, as almas se tornaram pessoas porque ela notou que havia muito o que se viver neste plano, antes deles, as únicas vidas presentes éramos nós, e nos sentíamos solitários e com pena das almas que tinham que sair daqui, ficávamos tristes com isso. Então, ela preparou este lugar para que cada alma que entrasse, virasse uma pessoa viva, e com isso, as pessoas entram aqui, algumas sem saber nada, como se tivesse acabado de nascer e aprendem tudo da cultura das pessoas que já estavam aqui antes, mas outras ainda têm fortes lembranças de seu passado.
- E como elas aparecem aqui?
- Morrendo. O corpo das pessoas ficam no Plano dos Mortais e a alma vem para cá antes de chegar no Paraíso, algumas delas não querem sair daqui porque julgam este lugar como o próprio Paraíso.
Ele parou, levantou as mãos para o chão e duas pedras se levantaram por entre a grama, fez um sinal para que eu me sentasse.
- Vou aprender a fazer isso?
- Isso e um pouco mais.
Sorri.
- Vou virar um animal também?
- Não. Se você realmente leu o livro, aprendeu que não somos humanos, e sim animais que se metamorfoseam.
Trisquei a lingua.
- Tinha me esquecido, mas não tem como eu aprender a me transformar?
Ele riu.
- Não, Kalevi. Você é o escolhido, e o escolhido não pode se transormar em um animal, mas um dominador sim.
Ri também.
- Não sabia disso.
Sentados em pedras, olhando para a civilização que me idolatraria, imaginando quantos poderes eu poderia ter, senti que muitas coisas me aguardavam, talvez eu teria que matar, sobreviver, reviver e todas as funções de um rei que é um deus, mas na verdade é um escolhido. Poderia ser bom, ruim, legal, entediante... Bom, só o tempo poderia dizer.
- Mais alguma dúvida?
Antti interrompeu minha reflexão.
- Ah. Sim. Várias.
- Estou aqui para isso.
Eram tantas que me enrolava para pensar em qual deveria falar primeiro, soltei a primeira que veio:
- Toivo encontrou vocês como animais, vocês estavam quase morrendo, e como ela os deixou saudáveis e fez com que se transformassem em humanos?
- Kalevi, o escolhido tem muitas funções, poderes e deveres. Um deles é trazer algumas pessoas de volta à vida quando estão doentes, mas quando já estão velhas, deixe que a natureza siga seu caminho, e foi isso que ela fez conosco, nos tirou as doenças e nos fez imortais, com as suas dádivas, nos deu poderes especiais.
- E como Toivo - chacoalhei a cabeça -, quer dizer... Como eu faço isso? Como eu posso tirar a doença e reviver alguém?
- Não sabemos - ele sorriu. - Somente o escolhido tem essa dádiva, os dominadores somente podem se transformar e dominar um elemento cada. Nada mais. Os guardiões podem ter o que quiserem, desde que o escolhido permitir.
Puxei um canto da boca. Uau. Tenho que ter mais responsabilidade que pensava.
- Antti, o que eram aquelas... criaturas nos seguindo?
- São almas negras. Pessoas que fizeram mal na Terra e não vieram para cá muito menos para o Paraíso - me perguntei se eles pensavam que o Paraíso era o mesmo que eu pensava ser. - Eles querem o Diamante. Precisamos de um guardião para isso, para proteger a todos nós.
- Por que eles querem o Diamante? Por que o poder de Toivo está nele?
- Exatamente. Com os poderes e dons dela, as almas negras podem fazer o que quiserem, e isso não é bom para ninguém. Suspeitamos muito que almas negras estejam juntas com Vaara.
Me perguntei quem era Vaara, até lembrar que ele foi quem enganou Toivo para ter seus poderes. Pensei em outra coisa para perguntar.
- Há quanto tempo estão esperando por mim?
Ele suspirou.
- Há três mil anos.
Olhei para ele, o que ele disse foi tão inacreditável que pareceu caluniar a realidade.
- O quê? Como assim?
- Não temos culpa se o escolhido nasceu tanto tempo depois! Se pudéssemos, você teria a substituído logo depois de sua saída!
- E o que aconteceu neste tempo todo?
- Ficamos tristes porque Toivo havia levado junto o sentido deste plano com ela. Nos sentíamos sozinhos, doentes, mas o tempo passou e nos acostumamos com a ausência dela, mesmo que seja doloroso até hoje. Os cidadãos sentiam-se desprotegidos, mas nenhuma ameaça veio atrás de nós, e descobrimos porque - ele se ajeitou na pedra - eles vinham para cá somente pelo Diamante, quando Toivo foi para a Terra, eles não vieram mais nos aterrorizar e provavelmente procuraram ela e deixaram o terror para trás por onde passavam.
- É tão confuso...
Ele assentiu. Respirei fundo. Era tão bom não sentir sujeira nenhuma na atmosfera.
- Este plano existe há quanto tempo?
- Tanto tempo que não consigo me lembrar. Mas estamos no século dezenove.
- Século dezenove?!
Ele me olhou e assentiu.
- Isso não tem sentido nenhum - disse enquanto fazia uma conta imaginária. - Se vocês estão me esperando há três mil anos, como podemos estar no século dezenove?
Ele me respondeu vagarosamente:
- Porque há mil e oitocentos anos que um cidadão deste plano fez o primeiro avanço: escreveu Menetetty Mailla Toivo.
O livro, eles contam os séculos a partir de quando o livro foi escrito.
- Por que resolveram escrevê-lo depois de tanto tempo?
- Precisávamos de um registro para isso, senão o novo escolhido não aceitaria - ele sorriu sarcasticamente para mim. - Não é?
Eu entendi seu ponto e comecei a rir também.
Mas nem tudo estava tão bem assim. Aquilo ainda não parecia verdade para mim mesmo tendo um pouco de sentido, parecia muito estranho estas terras terem mais de três mil anos e tiveram que esperar praticamente dois mil anos para contarem os séculos porque um livro foi escrito. E quem escreveu "As Terras Perdidas de Toivo"? Provavelmente algum deles, ou algum cidadão. Mas agora eu não estava mais em casa, não estava nem mesmo na minha Terra, muito menos na minha época - apesar daquele lugar ser mais velho que os anos que se passaram no lugar de onde eu vim. Alguma coisa parecia não ter sentido.
- Espere - disse, enquanto levantava os olhos. Antti olhou para mim. - E as pessoas que me conheciam na Terra? Algum clone vai ficar no meu lugar?
- Não. Sinto em lhe dizer isso mas, ninguém vai lembrar de você - olhei para ele querendo dizer muita coisa, mas as palavras simplesmente secaram dentro de mim. - É o melhor, Kalevi. É melhor tudo ficar como se você nunca tivesse existido, assim ninguém vai sentir a sua falta.
- Antti - eu ofegava como se tivesse corrido numa maratona. - Eu tenho família! Eu vou sentir falta deles e ninguém vai saber que eu existo?
- Sim, você quer alguém que você ama sofrendo porque você desapareceu? Para melhorar a situação, todos os rastros que você deixou lá vão sumir, assim como sua existência.
- Melhorar a situação? Antti, eu vou sentir falta deles!
Ele girou o corpo para mim e continuava calmo.
- Eu posso estar sendo coração frio ao dizer isto, mas, acho melhor somente uma pessoa sentir falta de várias do que o contrário. Eu te encontrei quando você estava nadando, se você ainda existisse para as pessoas que te conheciam, elas pensariam que você morreu afogado. Se as pessoas não te conhecem, elas não vão sentir sua falta, mas se sabem quem você é, vão ficar preocupados com seu sumiço.
Senti vontade de chorar, as pessoas que mais amava não saberiam quem eu sou, não saberiam de nada e tudo que me pertencia iria se desfazer, mas talvez seria melhor assim.
Suspirei.
- Tudo bem, eu faço esse sacrifício por quem eu amo.
Antti tocou no meu ombro.
- Eles vão ficar bem.
- Mas como você sabe que ninguém vai sentir minha falta?
- Por vários motivos. O escolhido dedica sua vida para cumprir seu dever e não deve ter interrupções. As pessoas boas que morreram antes do tempo vêm até nós e pedem para verem sua família na Terra, e também porque podemos ver como é a vida nos outros planos.
Senti uma chama de esperança acender dentro de mim.
- Como?
- Pelas nossas pedras, e pelo Diamante é melhor ainda. Você pode até entrar nestes planos mas, algo ruim pode acontecer.
- Tipo?
- Não sei. Temos medo do que pode acontecer. Podemos ficar presos no plano e perder o nosso lugar aqui ou algo pior ainda. Ninguém de nós sabe.
- Entendi.
- Mas não fique triste. Há muita vida aqui também, e pode ter certeza de que vamos amenizar sua dor.
Sorri.
- Obrigado por isso.
- Você está entre amigos. Agora vamos, temos que te apresentar para os cidadãos e comemorar.
Nos levantamos e voltamos para o palácio.
Ninguém vai saber que eu existi... Anttoni, Anikki... Acho que vou sentir falta até da insuportável da Anja. Emma, Kim, ninguém vai se lembrar de mim... Nem mesmo Taika. Bom, poderia não ser tão ruim assim, desse jeito, Taika não vai lembrar de quem quebrou seu coração.


*Voi Luoja = meu Deus

O Escolhido de Toivo - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora