A Sombra Negra

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Tudo começou hoje pela manhã (ou será que foi há anos atrás?) de maneira tranquila e sem problemas quando aquilo apareceu repentinamente no céu.
Era um dia claro e muito bonito, o sol estava alto, pássaros cantavam em
algum lugar enquanto uma brisa leve soprava avisando que talvez pudesse chover, mas tudo bem, pois chuva sempre é boa desde que não caia pesada demais e não cause estrago. Eu estava descendo a rua indo paro o meu carro, pois havia acabado de sair do mercado e estava cheio de sacolinhas com compras. Apesar de haver uma infinidade de carros estacionados ao meio fio, poucos carros passavam pela rua e as crianças aproveitavam para
jogar bola. Era uma avenida bem larga dando muito espaço para que se divertissem. No canteiro central além de arvores havia mesas de concreto,
daquelas para jogo de dama e em volta delas idosos e jovens movendo suas peças tentando ganhar suas partidas, vez ou outra se ouvia gargalhadas e gritos de vitória. Muitas casas bonitas e alegres com seus jardins e portões baixos de um bairro seguro. Realmente é um beneficio muito grande se morar em um bairro de periferia próximo a uma área de segurança militar, aonde se vêm jipes patrulhando as ruas vinte quatro horas por dia por causa do quartel do exercito que domina a visão da área alta lá em cima no inicio da rua. Ao meu lado o enorme estacionamento cheio de postes do mercado
atacadista. Mas não consigo lembrar-me como fui parar ali.
Só o que lembro é que estava andando pela calçada e de repente um
homem passou correndo e esbarrou em mim. Gritei com ele – Ei seu
maluco, desculpa ter nascido e estar na sua frente tá – Ele nem se virou
para olhar pra mim, parecia alucinado. Mas ai passou outra pessoa correndo e depois outra. Depois mais outra. E outra. Olhei para trás e vi uma enorme multidão correndo desesperadamente, algumas pessoas tropeçando e caindo com outras vindo após as primeiras passando por cima delas como se fossem meros obstáculos a serem ultrapassados, todas cegas pelo desespero. E como diz o ditado: “Onde há fumaça...”.
Eu passei a correr junto com a multidão sem nem saber o porquê, mas de repente, vendo aquelas pessoas correndo alucinadamente eu senti uma certeza aterradora de que eu tinha que correr e que não podia ficar ali.
Inexplicavelmente fui tomado de um terror enorme e apenas acompanhei a maça, eles deviam saber melhor que eu para onde ir. Achei pelo menos que sabiam. Mas quem vai saber a realidade numa bagunça como aquela?
Por todos os lados apareciam valas pela avenida, não eram buracos onde a terra cedia e afundava, mas as valas apenas apareciam no asfalto, em um
momento não estavam lá e no momento seguinte estavam. Na minha frente ia correndo um homem puxando desesperadamente uma menininha linda de vestido rodado rosa bebê que aparentava entre 10 ou 12 anos, quando repentinamente apareceu uma das valas à nossa frente engolindo a menina até a altura dos olhos, e depois dela eu acabei caindo também. O homem não. Ele não caiu.
_Aaaaaiiiiiiiihhh ! Socorro papai! Socorro papai! Por favor, me
ajuda papai! – A menina gritou desesperadamente em meio a soluços e lágrimas.
A menina lembrava uma bonequinha. Olhos azuis, cabelinho louro
cacheado de pele bem clarinha. Com aquele vestido rosa bebê e laço branco nos cabelos.
O pai olhou para ela por alguns instantes transtornado e petrificado. E de repente levantou os olhos na direção de onde havíamos acabado de vir.
_Não! Não! Não! NÃÃÃÃÃÃÃO! – gritou desesperadamente o pai
enquanto seus olhos começaram a derreter nas orbitas até que ele caiu
morto na nossa frente.
A bonequinha não conseguiu emitir som nenhum, provavelmente por estar em choque por ver o pai morrer daquela maneira na frente dela, apenas abriu a boca e arregalou os olhos sem acreditar no que acabara de ver.
Foi quando comecei a sentir uma incômoda opressão como se algo
começasse a apertar a minha nuca. Passei a sentir uma sensação estranha como se fosse uma terrível presença. Uma presença ruim, maligna. Um
calafrio que me percorria toda a coluna de cima abaixo como uma droga de uma faca extremamente gelada, uma vontade terrível de abrir a boca e começar a berrar e sair correndo enlouquecido como toda aquela gente.
Mas eu não podia simplesmente deixar aquela pequena boneca de vestido rodado rosa bebê e laço nos cabelos ali, chorando de medo, chorando por causa do papai dela que acabara de morrer enquanto aquilo seja lá o que fosse perseguia a todos nós. Com meus um e oitenta de altura foi fácil sair daquela vala.
_Vem mocinha. Me de a sua mão que vou te ajudar a sair daí. Está
bem? – prometi oferecendo minha mão a ela. Ainda chorando ela esboçou um sorriso tímido me estendo sua mãozinha pequena. Olhando dentro daqueles lindos olhinhos azuis era como olhar um belo par de pequenas piscinas que transbordavam medo e gratidão.
Segurei a mãozinha dela e puxei. A multidão continuava a correr apavorada e enlouquecida passando do nosso lado como se não nos enxergasse.
Alguns simplesmente iam caindo mortos no chão como se apenas fossem desligados por algum controle remoto maligno. Puxei a menina novamente.
Poças de gosma negra começavam a surgir por todos os lados dentro das
valas como se uma chuva invisível caísse deixando gotas de piche no chão, pingos negros e nojentos. Puxei a menina ainda mais outra vez, mas ela não saia de lá. Era como se algo a segurasse lá dentro da vala. Foi quando ela soltou o mais horrendo grito de dor que já ouvi, daqueles que nos arrepiam a alma. Da vala começou a subir aquela mesma gosma negra e a bonequinha começou a derreter lá dentro se diluindo na gosma negra bem na frente dos meus olhos. Dela sobrou apenas o bracinho magro e frágil ainda quente na minha mão. Soltei aquele bracinho e corri. Corri como nunca antes na minha vida. Corri, pois sabia que iria morrer se não corresse. Minhas sacolas já nem sei mais quando as perdi e nem se joguei ou caíram ou se me arrancaram das mãos. Eu não tinha coragem nem de olhar para trás. Eu apenas conseguia correr tomado de um medo que eu nunca poderia explicar.
Eu não conseguia lembrar onde deixei meu carro. Não sabia onde deixei o
maldito carro, talvez com meu carro pudesse escapar daquilo. Se é que
dava pra fugir daquilo. Mas do que estávamos fugindo. Que merda era isso tudo? Por que eu estava fugindo? Do que ou de quem eu estava fugindo? Eu não sabia o porquê e nem de que ou de quem eu estava fugindo, não fazia nenhum sentido aquela fuga. Mas o medo me fazia continuar fugindo. Eu tinha que continuar fugindo.
_Maldito filho da puta, ai está você. Onde deixei as chaves desse
maldito carro? Mas porque porra essa merda de carro estava tão longe?
Quando foi que eu o deixei aqui? – perguntava para mim mesmo, e quando finalmente achei a bosta da chave... – O que? Como assim? – primeiro o asfalto sumiu de baixo do meu carro, depois a droga do carro começou a derreter todo dentro de uma maldita poça de gosma negra. – Droga, droga, droga. –
Por que aquilo estava acontecendo comigo? Com todos?
Finalmente decidi que deveria deixar de me comportar como um maldito
covarde, parar de sujar as calças e olhar para trás e ver de quem estávamos fugindo tão desesperadamente. Foda-se, ninguém iria me fazer olhar para trás de forma alguma. Comecei a correr novamente. E sem olhar para trás.
De jeito nenhum eu iria olhar para trás. Eu não conseguia.
_Ei! Eeeeeei! Venha para cá, aqui você vai ficar seguro. – um homem me chamou de dentro de uma loja. E eu entrei. "Doces e Encantos" o nome da loja. Não era uma loja muito grande, mas era um lugar agradável com algo em torno de cinquenta metros quadrados de pura delicia. Passando pela porta logo à esquerda um balcão vitrine com bolos simplesmente lindos e convidativos e atrás dele uma ampla janela perfeitamente limpa onde se podia ver a rua já não mais ensolarada como antes, mas com um aspecto sombrio de fim de tarde em início de tempestade. Mais ao fundo da loja logo em frente prateleiras onde se podiam ver trufas de chocolates, pães de mel e bolachinhas artesanais. No centro da loja duas mesinhas com duas cadeiras cada uma. As paredes revestidas em fórmicas na cor branco gelo repletas de quadros com fotos com variadas delícias e guloseimas e uma única coluna no centro do pequeno ambiente, também revestidas da mesma formica.
_Tem certeza que estamos seguros aqui?
_Seguros? Quem disse que nós estamos seguros aqui?
_Você! Você disse que estaríamos seguros aqui dentro!
_Não rapaz, eu disse que você estaria seguro aqui dentro, e não nós.
Eu vou morrer bem aqui. Aliás, eu já sou um homem morto. Você está
falando com um homem morto. Você está falando com Joseph Morto, sim
esse é o meu nome agora. Joseph Morto sim senhor, esse é o meu nome.
O homem era tomado por risos curtos cheios de nervosismo olhando em
todas as direções como alguém que procura insetos, mas que realmente não sabe onde possam estar. Do canto da boca escorria baba encharcando sua barba enquanto ficava batendo a ponta do pé direito como se acompanhasse alguma musica que somente ele ouvia.
_Pare com isso, será que todos enlouqueceram aqui e só eu fiquei
são?
_Quem disse que você está são? Tem certeza que não ficou louco?
Eu tenho certeza que estou morto. – então ele riu alto como se fosse a coisa mais obvia do mundo o que ele acabara de dizer.
_Abaixa rapaz, ele esta chegando. Abaixa rápido, anda se não ele
mata você também.
Comecei a olhar pela janela para ver quem finalmente estava chegando,
mas não conseguia ver ninguém.
_Quem está chegando? Não vejo ninguém se aproximando, pelo
contrário, a rua está deserta fora as pessoas caídas mortas, nem o povo que corria da pra ver mais, sumiram todos da rua...
_ABAIXA PORRAAAAAA! – Joseph Morto gritou para mim como se fosse a coisa mais importante e urgente da vida dele.
Abaixei e percebi de canto de olho uma enorme sombra passando atrás de mim lá atrás na rua, assim que ela passou a claridade do dia sumiu de
repente, era como se aquela sombra tivesse manchado o dia da mesma
forma que se mancha uma camisa branca ao ser lavada junto com uma
roupa preta.
_Ufa, a sombra já passou, louco ou não o senhor me salvou. Agora
devemos pensar em uma forma sair daqui com segurança. Eu acho que o
que formou aquela sombra já deve ter ido embora. – disse a ele enquanto
me levantava de olho na porta da pequena loja de delícias. Virei-me para agradecer estendendo a mão para ele, mas...
Mas ele estava morto. Morto e grudado na parede. Na verdade era como se alguém o tivesse prensado nela até ficar chumbado. Olhos esbugalhados sem vida e boca aberta como um asmático que quisesse puxar o ar sem sucesso. Enfim Joseph Morto era realmente um homem morto. Mas como ele poderia saber? Ele sabia o que era que aquela sombra? Ele sabia o que estava acontecendo? Será que o inferno escapou para a terra hoje e
ninguém me avisou sobre esse evento? (Podia até imaginar um enorme cartaz escrito: Não perca hoje a incrível ascensão do inferno, mortes sinistras de brinde para todos os participantes presentes. Não perca a sua)
Se Joseph Morto sabia de alguma coisa, não vai mais contar para ninguém. Não nessa vida. Joseph Morto disse que eu estaria seguro ali dentro da loja, mas eu não podia ficar ali para sempre. Precisava saber se a minha linda Julia estava bem. Julia a melhor esposa do mundo. E falando nela. Onde Julia estava?
Por que ela não estava comigo? Não que eu estivesse me queixando por ela não estar ali naquele pesadelo. Era uma benção que ela não estivesse ali
passando por aquilo tudo. O problema é que não conseguia lembra onde ela
estava. Mas será que ela esta segura? Em algum lugar seguro? Será que
existe algum lugar seguro ainda?
Então sai da loja do Joseph Morto (será que a loja era dele?) e comecei a caminhar, precisava ir pra
casa saber de Julia. Julia era o amor da minha vida, a melhor coisa que já me aconteceu, minha primeira e única namoradinha desde a infância.

Olhos Abissais - O Fim da Vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora