– Olá espírito do profeta. Por que esse desespero todo? – Falou
aquela estranha que se oferecera a me ajudar antes.
– Está tudo acabado. O amor de minha vida morreu. Éramos felizes,
muito felizes. Agora me lembro dela como se nunca a houvesse esquecido.
Mas agora é tarde. Ela era o meu ar.
– Mas ainda não é o fim espírito do profeta. Você deve procurar a
saída e parar o sacerdote negro. É a única saída para o seu povo.
– Você não entende. Depois que nos casamos muita coisa deu errado
e nossa vida, principalmente por conta de escolhas erradas minhas. Investi mal. Escolhi amigos errados. Priorizei coisas que não eram prioridade. Importei-me com o que não importava e não me importei com o que importava. Todos os amigos e parentes me abandonaram e desistiram de
mim. Mas Julia não. Julia nunca me abandonou, sempre esteve ao meu lado confiando e acreditando em mim. Sempre me incentivou, sempre me encorajou. Sempre me empurrou a diante e acima. Reerguemo-nos
finalmente depois de muito esforço e conseguimos vencer as adversidades
sempre juntos. Então decidimos que era o momento de termos um filho.
Mais uma vez falhei com ela, pois ela não engravidava, mas ela não tinha
nenhum problema de saúde e nem nada. O problema estava em mim. Eu que era estéril e não a engravidava. Ao invés de se revoltar ela sugeriu
adotarmos uma criança. Estávamos já planejando tudo para começarmos a
visitar os orfanatos quando tudo desabou. Aqui estou eu injustamente vivo e ela morta. Então tudo que eu sou é por causa da força dela. Agora não a tenho mais. Então porque continuar lutando? – Desabafei.
A dor que eu sentia era muito grande. Julia era o centro do meu
universo e agora o meu universo estava totalmente bagunçado e à deriva dentro de um enorme nada.
– Mas já tentou imaginar o porquê está aqui? Tentou imaginar o que
é aqui? Ou onde é aqui?
– Como assim? Não entendi! – Perguntei.
– Espirito do profeta, aqui é o limbo. O nada. O fim. O início. O
nunca. Aqui o tempo não existe da mesma forma que você conhece no seu mundo. Na verdade, aqui o tempo nem existe. Aqui um minuto pode
significar séculos no seu mundo e um século pode significar um minuto.
– Isso é loucura. – Protestei.
– O principal é que uma vez que você conseguir sair pode chegar
antes de tudo acontecer e pode também chegar depois que não existir mais nada. Pode acontecer qualquer coisa. Não tem como você saber em que momento do seu mundo vai chegar. Então ainda pode salvar sua Julia. Isso me dava um fio esperança totalmente nova, era uma coisa
pequena, como uma formiguinha em um enorme jardim, mas eu me
apegaria a essa coisinha tão pequena e sairia de lá onde eu estava. Onde
quer que fosse esse lugar onde estou.
– Mas por que está me ajudando? – Perguntei àquela estranha mulher
linda de voz macia que ainda não sabia quem era.
– Porque um dia também amei. Um dia também vivi. Um dia também perdi esse amor, minha esperança, minha vida e minha alma.
– Então você também está morta? – Perguntei a ela.
– Sim. E não. Talvez eu seja a única viva aqui além de você. Talvez
eu seja a que mais está morta entre todos os mortos ou ainda talvez eu nem exista mais e seja somente o reflexo do que um dia já fui e que nunca mais voltarei a ser.
– Mas o que aconteceu com você afinal? – Quis saber, já com medo
da resposta.
– Em um tempo antes do tempo, quando os elementos existiam todos
em harmonia na terra e eu era uma criatura da natureza, não muito tempo após o início das coisas, eu tinha um amado companheiro que muito me amava. Nós nos amávamos e amávamos tudo que respirava e vivia na face da terra.
– O que aconteceu?
– O mal aconteceu. – Disse-me com tristeza – Um mal muito mais
antigo que eu e meu amado na verdade. Um mal que existiu desde todo sempre. Esse mal um dia já havia dia destruído toda a vida e depois
adormeceu por não haver mais nada a ser destruído. Mas depois de muito
tempo, depois de uma época em que o tempo nem era contado por não
haver ninguém para conta-lo, a vida retornou. A vida sempre retorna de
alguma forma. A vida não pode ser destruída definitivamente, pois ela
sempre renasce. Sempre. Mas o mal voltou e andava à espreita. Com um
único desejo.
– Qual?
– Destruir! Destruir tudo que era bom. Principalmente o mais
importante de tudo!
– O que é mais importante que tudo?
– O Amor. Não é obvio? O amor é a coisa mais importante que
sempre existiu, existe ou ainda existirá. E não havia amor maior do que o que eu e meu amado sentíamos um pelo outro. Assim como você, eu vi meu amado ser morto de forma cruel e dolorosa. Ainda mais do que sua Julia. Enlouqueci, a dor era muito grande para que eu suportasse. Eu e meu amado éramos importantes para o equilíbrio das coisas. Mantínhamos em
harmonia as energias que regiam o mundo que você chama hoje de seu. O que aconteceu conosco foi terrível.
– Eles também o torturaram da mesma forma que fizeram com minha Julia?
– Não, foi muito pior. Não torturaram o corpo dele, mas a alma.
Destruíram-na de uma forma irreversível. Ele tinha a ama mais pura e bondosa que jamais existiu outra igual. Saíamos todos os dias pela terra para admirar e proteger os seres vivos, todos eles. Compartilhávamos nossa vida com todos os que viviam. Harmonizávamos com tudo em que havia vida. Mas um dia ele sumiu. Sabia que algo estava errado, mas não sabia o
que poderia ser. Nunca tivéramos antes contato com o esse mal que nos rondava secretamente. Então não estávamos preparados para o ataque que sofremos. Quando ele voltou não era mais ele. Era ele, mas muito diferente. Junto a mim ele tinha o poder de restaurar das coisas da natureza. De certa forma ele trazia a vida de uma maneira diferente. Não criava a vida em si, mas ele a transferia. Quando alguma coisa morria, o que é natural a toda a
existência, ele absorvia essa energia vital e direcionava para uma nova
forma de existência. – Disse ela.
Eu sentia uma enorme dor e tristeza com o relato dela. Eu tinha a
sensação de que se esticasse a mão poderia tocar em todo aquele pesar que emanava dela.
– Mas você nunca mais o viu? – Perguntei.
– Sim, eu o vi e o vejo até hoje ainda. Felizmente e também
infelizmente.
– Como assim?
– Comecei a encontrar a morte por todos os lugares por onde antes
passeava com ele. Era como se a morte perseguisse todos os nossos locais preferidos. Mas não era uma morte comum, mas uma morte absoluta, a energia dos seres sumia, se extinguia, não ia para outra forma de vida mais. Claro que ele não estava mais lá para direcionar a energia vital, mas ela deveria estar ali, pairando esperando outra forma de vida a absorver naturalmente, sabe. Mas aquela vida toda estava sendo roubada. Drenada por alguém, ou por algo.
– Quem ou o que estava drenando a vida? – Perguntei.
– Era ele! – Ela respondeu.
– Ele quem?
– Ele, o amor da minha vida. Ele não era mais ele. Mas eu sabia que era ele. Eu via a essência dele naquele ser terrível. Eu via a presença dele
naquela sombra negra.
– Como assim? Que tipo de sombra negra você quer dizer? Isso é
algum tipo de metáfora? – Perguntei intrigado.
– Não, não é nenhuma metáfora. Ele se tornara uma imensa e terrível
sombra negra que exalava a morte. Por onde ele passasse toda a vida era
sugada, drenada e roubada. A mesma sombra negra que você viu matando a vida ao seu redor quando tudo começou. Toda aquela vida roubada está por aqui, em algum lugar, em sofrimento perpetuo.
– Mas que é isso que você está contando? Ele que causou isso tudo
então? Ele é aquela maldita sombra da morte que a tudo tragou? Que quase tragou a mim também?
– Sim. Por isso eu disse que o que fizeram com ele fora bem pior.
Muito pior do que fizeram com sua Julia. Eles acabaram com a essência
dele. Ele só fazia levar a vida a todos e transformaram-no em um
instrumento da morte.
Eu não sabia o que dizer. O que poderia ser pior que isso? O que
poderia doer mais que isso?
– Mas isso ainda não era o que mais doía. – Continuou a bela e pesarosa mulher – O que mais doeu foi que enquanto estávamos juntos,
sempre juntos todos os dias, achávamos que sempre teríamos um ao outro e priorizamos outras coisas que não eram a nossa companhia e nosso amor, pois não vivíamos para nós e sim para outros. E quando o perdi enlouqueci, pois nunca mais o teria para mim. Éramos duas criaturas mágicas que nunca tinham o direito de morrer, condenados para sempre a sofrer vivendo
separados. Nessa época surgiu mais outra criatura maligna. Ela também
tinha muito poder e começou a destruir tudo que era belo. Sempre para destruindo tudo que representasse o amor, como se esse sentimento a ofendesse ou machucasse de alguma forma.
– E como você lidou com toda essa situação?
– Mesmo para mim foi muito difícil lutar contra eles, pois mesmo
sendo má e mortífera a sombra da morte ainda continuava sendo meu
amado companheiro lá em algum lugar, lá no íntimo daquele ser imaginava eu. Ainda não sabia que todo o bem que havia nele já havia sido destruído para sempre. Nunca pude ajuda-lo. A mulher de olhar abissal, aquela te perseguindo, por mais que eu a caçasse nunca a encontrava para poder combate-la, logo tomei uma decisão que foi decisiva nessa guerra.
– E o que você fez então? – Perguntei a ela.
– Os humanos já caminhavam sobre a terra naquela época, fazia
muito pouco tempo, mas vocês já haviam aparecido. Resolvi que deveria treina-los para essa guerra.
– Você está falando dos guerreiros poderosos que combatiam os
demônios?
– Sim, eles mesmos, e os demônios eram meu amado, agora uma
sombra negra cheia de morte e a tal mulher de olhos abissais, chamada
pelos humanos de demônio do abismo, que eu nunca encontrava. Só sabia que ela existia porque os humanos me falavam sobre ela.
– Como você os treinou?
– Os treinei nas artes da magia Elemental controlando os elementos
da natureza, lhes dando poder para se defenderem.
– Eu lutava ao lado deles contra meu amado. Mas um dia eu percebi
que de tempo em tempo eu caia em sono profundo. E o demônio do abismo só aparecia quando eu dormia. E quando ele aparecia causava grande estrago causando muita morte. Até o dia que finalmente descobri o que era essa mulher, descobri QUEM era o demônio do abismo.
– E quem ou o que era o demônio do abismo? – Perguntei.
– Para meu desgosto descobri que o demônio do abismo... era eu
mesma que acabei me tornando naquela personificação do mal.
– Você? Tornou-se má? Mas como se está aqui me ajudando? – Perguntei.
– Diferente dele que se tornou completamente mau, eu oscilava entre o bem e o mal. Ia e voltava. Nos momentos que estava sobre o domínio do mal eu destinava meu tempo a perseguir todos os seres vivos. Matava por sentir inveja da felicidade deles, por poderem amar e serem amados. Mas nos momentos que estava no controle do meu lado bom, eu ajudava e treinava os povos a se protegerem, eles não sabiam que eu era tanto protetora quanto algoz. Pois minha forma física e aparência mudavam de acordo com minha mudança entre o bem e o mal. Ensinei homens fortes na magia protetiva e de combate. Os poderosos guerreiros, eu os treinava desde o nascimento a combaterem a meu amado e minha forma do mal. Meu amado drenava a alma dos seres, mas minha forma má roubava tanto a alma quanto o corpo e todos que eram roubados eram enviados para esse mundo de dor e tortura que você vê agora. Um dia, já cansada de conviver com meu lado mal decidi que era hora de dar um fim naquilo tudo. Criei uma magia poderosa que foi capaz de separar o meu bem do meu mal. Que iria criar dois seres diferentes e separados. Mas isso não era natural, pois não haveria mais equilíbrio nenhum. O bem e o mal sempre devem existir em todos os seres em harmonia e equilíbrio. Mas eu preparei também uma maneira de os seres comuns nos aprisionarem. No momento da separação, enviei toda a minha essência mágica do bem que havia em mim ao ventre de uma mulher humana. E essa essência foi crescendo e amadurecendo na
semente dela de geração em geração. E um dia nasceu um grande xamã,
poderoso o suficiente para criar algo que aprisionaria todo o mal que meu eu mal e meu amado passamos a espalhar pelo mundo. Ele criou uma
magia chamada de selo das almas, que você já sabe o que foi. Pois o meu
mensageiro te contou a história.
– Então era você que estava me ajudando o tempo todo?
– Sim, foi a minha forma do bem que te ajudou todo esse tempo. Não
posso falar que era eu, pois já não existe mais eu uma vez que estou
separada de mim mesma. Mas você deve ter muito cuidado espirito do
profeta, pois a minha forma do mal ainda está te procurando e fará tudo que puder para impedir a sua missão.
– Mas como é a sua forma do mal? Como poderei a reconhecer?
– Primeiro saiba que não deve nunca deixar que ela toque em você.
Um toque e você será dela para sempre. Nunca a encare, pois assim ela te dominará. Então mantenha sempre a maior distância possível de meu eu mal, o demônio do abismo.
– Está bem, entendi. Mas me diga, por favor. Como seu eu mal é? Eu
precisava saber.
– Ela é a personificação de tudo o que é mal separado de tudo que é o
bom. Nela só existe o desejo que fazer o mal e causar dor. Ela fala sem
falar, olha sem olhar, pois no lugar dos olhos existem apenas abismos
mortais, onde só existe o que é mal e podre.
– Entendi, agora entendi tudo, e você continuará me guiando e
ajudando?
– Não espírito do profeta, toda energia que ainda me sobrava nesse
antro de maldade se esvaiu lhe ajudando, meu eu bom vai desaparecer de
uma vez por todo o sempre, agora eu devo lhe dizer adeus espirito do
profeta, não me verá mais. Boa sorte para você, para sua Julia e para seu
povo.
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Olhos Abissais - O Fim da Vida.
HorrorAcontecimentos estranhos ameaçam por fim na vida como conhecemos e apenas um homem desorientado, amedrontado e perdido pode salvar a vida do mal inimaginável que está por vir. #Capa feita pelo time de capistas do projeto Lion Livros.#