Uma noite, após a morte de Madre Genoveva, tive um mais consolador. Sonhei que fazia seu testamento, dando a cada irmã uma coisa que lhe pertencera; quando chegou minha vez, pensava nada receber, pois não lhe sobrava nada, mas, erguendo-se, disse-me três vezes, num tom penetrante: "A vós, deixo meu coração".
Um mês depois da partida da nossa santa Madre, começou uma epidemia de gripe na comunidade. Só eu e mais duas irmãs ficamos de pé. Naquela época, eu estava sozinha para cuidar da sacristia, a primeira encarregada estava gravemente doente. Eu devia preparar os enterros, abrir as grades do coro durante as missas etc. Naquele momento, Deus me deu muitas graças de força; pergunto-me agora como pude fazer tudo o que fiz sem temor, a morte reinava em todo lugar, as mais doentes eram tratadas pelas que apenas conseguiam se arrastar. Logo que uma irmã soltava o último suspiro, éramos obrigadas a deixá-la sozinha. Numa manhã, ao me levantar, tive o pressentimento de que Irmã Madalena estava morta, o dormitório estava escuro, ninguém saía das celas. Por fim, decidi-me a entrar na de Irmã Madalena, cuja porta estava aberta; de fato, vendo-a vestida e deitada numa enxerga, não tive o menor medo. Vendo que ela não tinha vela, fui buscar uma e a coroa de rosas.
Na noite da morte da Madre Vice-Priora, eu estava sozinha com a enfermeira; é impossível imaginar o triste estado da comunidade naquele momento, só as que estavam de pé podem ter idéia, mas no meio daquele abandono sentia que Deus velava por nós. As moribundas passavam sem esforço para a eternidade. Logo depois da morte, uma expressão de alegria e de paz espalhava-se em seus traços, parecia um sono repousante. De fato o era, pois após o cenário deste mundo que passa acordarão para usufruir eternamente das delícias reservadas aos eleitos...
Durante todo o tempo em que a comunidade foi provada dessa forma, pude ter a inefável consolação de comungar todos os dias... Ah! como era bom!... Jesus me mimou muito tempo, mais tempo que suas fiéis esposas, pois permitiu que me fosse dado sem as outras terem a felicidade de recebê-Lo. Estava também muito feliz por poder tocar nos vasos sagrados, por preparar os paninhos destinados a receber Jesus. Sentia que precisava ser muito fervorosa e lembrava-me com freqüência esta palavra dirigida a um santo diácono: "Sede santo, vós que levais os vasos do Senhor".
Não posso dizer que recebi freqüentes consolações durante minhas ações de graças; talvez seja o momento em que tenho menos... Acho isso muito natural, pois ofereci-me a Jesus não como uma pessoa que deseja receber a visita Dele para a própria consolação mas, pelo contrário, para o prazer de Quem se dá a mim. Vejo minha alma como território livre e peço a Nossa Senhora que tire o entulho que poderia impedi-la de ser livre, depois suplico-lhe que erga uma ampla tenda digna do Céu, enfeite-a com seus próprios adornos e convido todos os santos e anjos para vir dar um concerto magnífico".
Quando Jesus desce ao meu coração, tenho a impressão de que Ele fica contente por ser tão bem recebido e eu também fico contente... Tudo isso não impede as distrações e o sono de vir visitar-me. Mas ao terminar a ação de graças, vendo que a fiz tão mal, tomo a resolução de passar o resto do dia em ação de graças... Estais vendo, Madre querida, que estou muito longe de ser levada pelo temor, sempre encontro o meio de ser feliz e tirar proveito das minhas misérias ... Sem dúvida, isso não desagrada a Jesus, pois parece encorajar-me nessa via. Um dia, contrariamente a meu hábito, estava um pouco perturbada ao ir comungar, tinha impressão de que Deus não estava contente comigo e pensava: "Ah! se hoje eu receber só metade de uma hóstia, vou ficar muito aflita, vou crer que Jesus vem forçado ao meu coração". Aproximo-me... oh felicidade! pela primeira vez na minha vida, vejo o padre pegar duas hóstias, bem separadas, e dá-Ias a mim!... Compreendeis minha alegria e as doces lágrimas que derramei vendo tão grande misericórdia...
No ano seguinte à minha profissão, isto é, dois meses antes da morte de Madre Genoveva, recebi grandes graças durante o retiro.
Ordinariamente, os retiros pregados são-me mais dolorosos que os que faço sozinha, mas naquele ano foi diferente. Tinha feito uma novena preparatória com muito fervor, apesar do sentimento íntimo que me animava, pois tinha a impressão de que o pregador não saberia compreender-me, por ser destinado sobretudo aos grandes pecadores, mas não às almas religiosas. Querendo Deus mostrar-me que só Ele era o diretor da minha alma, serviu-se justamente desse padre que não foi apreciado por mim... Tinha então grandes provações interiores de diversos tipos (até me perguntar, às vezes, se o Céu existe). Sentia-me disposta a nada dizer sobre minhas disposições interiores, não sabendo como expressá-las; logo que entrei no confessionário, senti minha alma dilatar-se. Depois de falar poucas palavras, fui compreendida de modo maravilhoso e até adivinhada... minha alma parecia um livro no qual o padre lia melhor do que eu mesma... Lançou-me de velas desfraldadas nas ondas da confiança e do amor que me atraíam com muita força, mas nas quais não ousava avançar... Disse-me que minhas faltas não entristeciam a Deus, que, estando no lugar Dele, me dizia em nome Dele que estava muito satisfeito comigo...
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HISTÓRIA DE UMA ALMA (Santa Teresinha do Menino Jesus) COMPLETO
SpiritualALENÇON (1873 - 1877) J.M.J.T. Jesus Janeiro de 1895 História primaveril de uma Florzinha branca escrita por ela mesma e dedicada à Reverenda Madre Inês de Jesus.