Na hora em que tínhamos combinado ficar juntas, ao olhar para mim, a pobre irmãzinha percebeu logo que eu não era a mesma. Sentou-se ao meu lado enrubescendo e eu, apoiando sua cabeça no meu coração, disse-lhe com lágrimas na voz tudo o que pensava dela, mas com expressões de muita ternura, manifestando-lhe tão grande afeto que logo as lágrimas dela misturaram-se às minhas. Admitiu com muita humildade que tudo o que eu lhe dizia era verdade, prometeu iniciar vida nova e pediu como um favor avisá-la sempre das suas faltas. Enfim, no momento de nos separar, nosso afeto passara a ser totalmente espiritual, nada de humano'°' subsistia. Realizava-se em nós esta passagem da Escritura: "O irmão ajudado pelo seu irmão é mais do que uma cidade fortificada".
O que Jesus fez com seu pincelzinho teria sido logo apagado se não tivesse agido por meio de vós, Madre, para realizar sua obra na alma que Ele queria inteiramente para Si. A provação pareceu muito amarga à minha pobre companheira, mas vossa firmeza triunfou e pude então, tentando consolá-la, explicar àquela que me destes por irmã entre todas em que consiste o verdadeiro amor. Mostrei-lhe que era a ela própria que amava e não a vós; disse-lhe como eu vos amava e que sacrifícios fui obrigada a fazer, no início da minha vida religiosa, para não me apegar a vós de maneira totalmente material, como o cachorro se apega a seu dono. O amor alimenta-se de sacrifícios, mais a alma recusa para si satisfações naturais, mais sua ternura se torna forte e desinteressada.
Lembro-me de que, quando postulante, tinha tentações tão violentas de ir vos encontrar para minha satisfação, para achar algumas gotas de alegria, que tinha de passar rapidamente diante do depósito e agarrar-me ao corrimão da escada. Chegavam à minha mente uma porção de permissões a pedir; enfim, Madre querida, encontrava mil motivos para satisfazer a minha natureza... Como estou feliz agora por me ter privado, logo no início da minha vida religiosa. Já usufruo da recompensa prometida aos que combatem corajosamente. Não sinto mais necessidade de me recusar todas as consolações do coração, pois minha alma está consolidada pelo único que eu queria amar. Vejo com satisfação que, amando-o, o coração se dilata e pode dar incomparavelmente mais ternura aos que lhe são caros, do que se tivesse ficado concentrado num amor egoísta e infrutífero.
Madre querida, relatei o primeiro trabalho que Jesus e vós vos dignastes realizar por ruim; era apenas o prelúdio dos que me deviam ser encomendados. Quando me foi dado penetrar no santuário das almas, vi logo que a tarefa ultrapassava as minhas capacidades. Lancei-me, então, nos braços de Deus e, como uma criancinha, escondendo o rosto nos cabelos Dele, disse-Lhe: Senhor, sou pequena demais para alimentar vossas filhas, se quiserdes dar-lhes, por mim, o que convém a cada uma, enchei minha mãozinha e, sem deixar vosso colo, sem desviar a cabeça, darei vossos tesouros à alma que vier pedir alimento. Se ela gostar, saberei que não é de mim, mas de vós que a recebe; se reclamar, não ficarei perturbada, procurarei persuadi-la de que esse alimento vem de vós e evitarei procurar outro para ela.
Madre, desde que entendi ser impossível fazer alguma coisa por mim mesma, a tarefa que me impusestes deixou de me parecer difícil; senti que a única coisa necessária consistia em unir-me sempre mais a Jesus e que o restante me seria dado por acréscimo. De fato, nunca minha esperança me enganou, Deus encheu minha mãozinha todas as vezes que foi necessário para alimentar a alma das minhas irmãs. Confesso, Madre querida, que se me tivesse apoiado, o mínimo que fosse, nas minhas próprias forças teria capitulado... De longe, parece fácil fazer bem às almas, fazê-las amar sempre mais a Deus, modelá-las, enfim, segundo seus próprios pontos de vista e suas idéias pessoais. De perto, é o contrário... sente-se que fazer o bem, sem a ajuda de Deus, é tão impossível quanto fazer o sol brilhar no meio da noite... Sente-se que é absolutamente necessário esquecer as próprias preferências, as concepções pessoais e guiar as almas pelo caminho que Jesus delineou para elas, sem procurar fazê-las caminhar pela nossa via. Não é ainda o mais difícil; o que mais me custa é observar as faltas, as mais leves imperfeições e dar-lhes combate mortal. Ia dizer: infelizmente para mim, mas seria uma covardia, portanto digo: felizmente para minhas irmãs, desde que tornei lugar nos braços de Jesus, sou como o vigilante que, da mais alta torre de uma fortaleza, observa o inimigo. Nada escapa ao meu olhar; fico muitas vezes espantada por enxergar tão bem e acho o profeta Jonas muito desculpável por ter frigido em vez de ir anunciar a ruína de Nínive. Preferiria mil vezes receber recriminações a fazê-las, mas sinto que é necessário que seja um sofrimento, pois quando se age segundo a natureza é impossível que a alma à qual se quer apontar as faltas compreenda os próprios erros; só vê uma coisa: a irmã encarregada de me dirigir está zangada e tudo recai sobre mim, embora eu esteja cheia das melhores intenções.
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HISTÓRIA DE UMA ALMA (Santa Teresinha do Menino Jesus) COMPLETO
SpiritualALENÇON (1873 - 1877) J.M.J.T. Jesus Janeiro de 1895 História primaveril de uma Florzinha branca escrita por ela mesma e dedicada à Reverenda Madre Inês de Jesus.