Inocência

O Mágico: O mais perigoso do Universo

     Muitas coisas mudaram na Fortaleza desde que o Deus pirralho me confiou a missão.Eu conheci todas as servas, isto é, as outras pessoas que assim como eu haviam sido trazidas de volta à vida pelo Deus de olhos violeta.Com isso, os corredores acabaram se preenchendo com portas ( todas beeem mais bonitas que a minha...). Minhas habilidades como servo também estavam progredindo, graças ao treinamento diário que Joy me dava.

    Eu não era mais humano, logo meu corpo não funcionava mais como o de um. Comida não era mais algo necessário, me explicou Joy, eu só iria comer quando desejasse, apenas com o intuito de saboreá-la.Eu podia fazer coisas impossíveis para um ser humano, como atravessar paredes ou ficar invisível.É possível para mim afastar cada um dos átomos que compõe o meu corpo, tendo o controle de cada um individualmente.Para atravessar objetos, os átomos precisam ficar realmente muito espalhados, bem mais do que o necessário para apenas ficar invisível.É possível também tornar algumas partes do corpo densas o suficiente para pegar objetos, enquanto outras ficam totalmente separadas. Joy me disse que os monstros possuem "corpos fluídos" e que essa habilidade de mudar o estado do corpo foi aprendida com eles. Ela também me disse que,com o tempo, pequenos acidentes como ficar com uma parte do corpo presa na parede ou esquecer de solidificar alguns dedos deixavam de acontecer.

    Com tudo isso, eu estava realmente confiante quanto a minha capacidade de cumprir a missão que o Deus pirralho me confiou.Mesmo assim, foi impossível dormir na noite anterior à missão.

    Cheguei adiantado ao meu ponto de encontro com o Deus, mas mesmo assim ele já estava lá, batendo os pés com uma perceptível impaciência.Olheiras tão escuras quanto a cor de seus olhos marcavam seu rosto pálido.Eu não tinha sido o único que havia passado por uma noite ruim pelo visto...O Pequeno Deus deu um sorriso fraco ao me ver.

    - Bom dia, Mágico. Fico feliz em vê-lo no horário - Franzi meu rosto para o garoto.Não haviam traços da habitual animação em sua voz, nem seu olhar parecia brincalhão.O Deus Pirralho parecia quase... doente!

    - O senhor está bem?

   - Ora ora, Mágico - Disse com um sorriso apenas um pouco mais animado - Você? Me tratando com respeito? Eu devo estar mesmo miserável... - ele deu uma risadinha abafada, como se estivesse sem ar - Eu estou bem, só estou usando uma magia muito poderosa, e terei que usar outras.Mas não se preocupe comigo, sou um deus, e a missão de hoje vale o esforço.

   O Pequeno Deus começou a trabalhar então. Observei enquanto ele murmurava palavras em uma língua estranha e quase morri de susto quando o vento ao nosso redor começou a sussurrar de volta. Um círculo de fogo azul se fechou ao nosso redor, nos cercando completamente e fazendo o mundo ao nosso redor desaparecer.E então, tão rápido quanto surgiu, o círculo de fogo desapareceu, revelando uma paisagem totalmente diferente da qual nós estávamos.

   - Bem vindo ao mais importante dos Mundos dos humanos.Você pode ver o festival naquele vale.Mas antes que você desça até lá, eu preciso te dar algumas orientações quanto a missão de hoje.

    Nós estávamos no topo de um monte e abaixo de nós um enorme festival se estendia por uma área impressionante.Ele estava repleto de cores vibrantes e mesmo àquela distancia nós podíamos ouvir o som de milhares de músicas e vozes se erguendo até as montanhas.Havia também uma montanha impressionante,com um enorme castelo se erguendo sobre ela. O monte e castelo Blackshield . Me assustei com a presença de uma memória e olhei rapidamente para o Pequeno Deus. Não sabia o por quê, mas algo me dizia que não era bom mostrar a ele que estava me lembrando de algo. Felizmente, o Pequeno Deus parecia perdido demais em seus próprios pensamentos para reparar em mim.

    - Enfim, Mágico - Disse de repente o jovem Deus, finalmente voltando a si - Eu preciso que você entregue isso para o príncipe - Ele finalmente estava abrindo o pacote.Depois de tanto suspense eu finalmente iria descobrir qual era objeto mais perigoso do universo - Não vai ser difícil reconhecê- lo, não importa como esteja vestido.A família real tem características marcantes: cabelos loiros quase brancos e olhos azuis realmente muito escuros.Ele provavelmente vai estar acompanhado de sua irmã,então procure por duas crianças com essas características.

    Acenei com a cabeça, apesar de não estar realmente prestando muita atenção. O Pequeno Deus segurava um livro de capa vermelha aveludada de aparência simples, mas até mesmo eu com meu pouco treinamento mágico podia sentir a poderosa aura que ele emanava.

    - Por que eu não posso simplesmente desmanchar o meu corpo e colocar o livro nas coisas do príncipe?

   - Nós não estamos mais na Fortaleza, Mágico... Esse mundo é protegido imensamente por uma barreira anti monstros. Se você desmanchar seu corpo, ele não irá se reconstituir sozinho, você irá precisar de... estímulos...

    Joy havia me dito isso. Fora da Fortaleza, a magia para realizar feitiços e tornar o corpo fluído era retirada diretamente da magia presente em nossa alma, e só haviam três maneiras de recuperar os poderes e refazer nosso corpo: absorver magia pura de um local fortemente irrigado com ela, sendo que tais locais são ultra raros, recebendo magia de nosso deus, o que dependia da boa vontade do Deus Pirralho, ou retirar de outros seres vivos... bebendo o sangue deles ou absorvendo suas almas.Estremeci só de pensar nessa última possibilidade.

   - Qualquer monstro que tentar se alimentar dos humanos deste planeta será morto instantaneamente pela barreira - disse o Deus pirralho, como se eu pudesse cogitar roubar a vida de alguém - Você irá se fantasiar como um mágico de festa infantil e fazer alguns truques com o meu poder para entreter as crianças humanas, e então presenteará o príncipe como se fosse apenas uma recompensa de festa.Tente localizar e fazer seu show o mais rápido possível, pois é muito difícil para mim manter seu corpo inteiro nesse planeta.Não se preocupe, os truques de mágica virão instintivamente para você

    O Pequeno Deus me ajudou a colocar a capa que me marcava como um "mágico de festa" e me entregou o caderno, que queimou de leve as minhas mãos cobertas por luvas brancas (outro item da minha fantasia de mágico).Depois ele colocou a mão em seu próprio peito e fez um movimento, como se estivesse puxando algo de lá. Um feixe amarelo ouro saiu de seu corpo, parecendo ao mesmo tempo com fogo e com água. Aquilo era magia divina em estado puro! O pequeno deus colocou o feixe em minhas mãos e ele foi rapidamente absorvido, me dando uma sensação de queimação estranhamente nostálgica em minhas veias.

   Comecei a descer o monte em direção ao festival quando algo caiu de dentro do livro.A aura de poder o deixou completamente, fazendo-o parecer totalmente comum.No chão, uma carta de pôquer, um ás de copas irradiava uma quantidade absurda de poder, mais forte que a energia de uma estrela.Ouvi o Pequeno Deus xingar baixinho e sua voz parecia a milhares de quilômetros, me abaixei para pegar a carta e o tempo que demorei para esticar a mão pareceu durar uma eternidade até que uma dor estridente me trouxe de volta para a realidade.

    - Seu idiota! - Nunca tinha visto o Deus Pirralho daquele jeito.Seu rosto estava vermelho e ele estava totalmente sem fôlego, os olhos brilhando com uma intensidade insuportável - Você praticamente enviou um sinal luminoso para todos os monstros do universo mostrando onde a carta está! Por que você não os convida formalmente para roubar a carta, com uma festinha para comemorar a destruição desse universo? - Eu nunca tinha visto ele tão zangado.Depois de um tempo, ele respirou fundo, colocou a carta dentro do livro de novo e o entregou de má vontade para mim - Vá logo realizar a sua tarefa, e tente não derrubar a carta de novo.

    O Pequeno Deus Furioso desapareceu depois dessas palavras, deixando apenas um pequeno rastro de fumaça onde estava.Comecei a andar em direção ao Festival quando ouvi dentro da minha cabeça

   "E não ouse tocar a carta novamente, John, se não quiser voltar para seu túmulo e nunca mais sair de lá".

   Precisei de alguns instantes para me recuperar dos choques múltiplos de A) Ouvir a voz do Deus Pirralho dentro da minha mente, B) Recuperar meu nome e C)Me lembrar de como aquele mesmo deus me fez apagar e esquecer meu nome no dia em que me trouxe de volta a vida. Depois de superar a onda de medo que senti pelo Deus, voltei a caminhar até o Festival, determinado a não cometer nenhum erro.