Não há muito o que falar sobre a noite anterior. Eu estava ferida, fisicamente, mentalmente e emocionalmente, me senti sozinha. Ali na sala, debruçada no piano, com sangue entre as pernas e lágrimas no rosto, minhas pernas tremiam, minhas costas doíam como a morte e, juro que senti que jamais iria sorrir novamente...Mas isso não acabaria ali.
Me levantei com dificuldade, agarrada aos móveis, passei da sala ao corredor, segurei no corrimão e subi as escadas com o coração dolorido. Entrei no banheiro, retirando as roupas rasgadas e manchadas de sangue, para descer a saia eu tive que dobrar as costas, eu quis gritar, mas não, não gritei, entrei na banheira meia vazia, de água morna e comecei a jogar água acima dos ombros, cabeça e corpo. Eu mal conseguia lavar minha intimidade, pude ver a água ficar rosada, saí imediatamente.
Eu me sentia uma velha, com a coluna ferrada e agarrando nos móveis para se locomover. Entrei no meu quarto, tranquei a porta e me joguei na cama. Me cobri e chorei, chorei como nunca havia chorado antes, adormeci.Fui acordada com leves tapinhas de uma criada negra chamada Olga, de cabelos curtos prendidos em um turbante branco, possuía quadris largos e seios fartos, era um pouco gorda e corcunda, mãos grandes e pés pequenos, usava um vestido azul claro e um avental branco manchado de café. Olga sempre fora gentil comigo, ela sabia sobre meus gostos e não me julgava, sempre me contando histórias sobre sua família, suas saudades, suas dores, chorávamos as pitangas uma da outra e eu a considerava mais mãe do que a minha própria, eu a amava.
-Não vai se atrasar hoje, hein. -Disse em tom suave.
-Ah, Olga...o que eu faço sem você...? -Respondi com sono enquanto me levantava devagar, minhas costas estavam muito melhores e eu não estava mais sentindo minha vagina arder como se tivesse um rasgo enorme nela. Poupo os detalhes, me arrumo para a segunda aula da academia, confesso que estava com medo do que estava prestes a aprender. Ignorei a existência de minha família na casa, mal comi, me despedi de Olga antes de descer as escadas e pude ver minha mãe nos observando da porta do quarto dela, me olhava com desprezo e olhava Olga com mais ainda. Desci as escadas de maneira tão rápida que não fui vista pelo meu pai, ainda bem, hoje era um novo dia e eu estava dando o meu melhor para esquecer a noite anterior.
A manhã estava fresca, as árvores estavam úmidas por conta do orvalho e o sol refletia as gotículas numa perfeição indescritível, a brisa gelada do ar fez meu nariz ficar avermelhado e meus olhos semicerrarem, meu cachecol branco balançava em meu pescoço e eu ouvia somente o som da natureza e de meu salto pisando na calçada, todos os dias eu prestava atenção naquela paisagem, acompanhava as mudanças e as estações, lembrei-me da infância, é...eu sequer imaginava o que iria acontecer no futuro, pelos deuses...eu era tão inocente...
Chego no portão da academia, antes tão iluminada e alegre, agora parecia um cenário gótico e mórbido que se eu não conhecesse de anos, não entraria nem que me pagassem. Os portões de ferro enferrujado rangiam em conjunto com a velha madeira das paredes, o concreto sujo com cocô de pombo e as cortinas meio bagunçadas que por conta do forte vento do dia, estavam para fora. Adentro devagar, como se fosse a última vez que eu o faria, prestei atenção em todos os detalhes e, nunca havia notado a presença de cogumelos por todos os lados nos canteiros de flores mistas, no gramado e na casca das árvores. Deve ser por conta dos esporos deles que a Madame Pliè não parava de tossir.
Estou eu andando na direção da sala quatro, já tirando meu cachecol do pescoço e o entrelaçando na bolsa, retiro meu casaco e, ao entrar na sala, coloco a bolsa de lado, retirando minha saia e colocando em cima dela. O Sr. James entra na sala vestindo um terno preto listrado e com uma flor no bolso perto do pescoço. É de se estranhar.
-Vejo que a dor passou, pois bem, quero que se deite no chão de barriga para baixo.
Assim que o escuto, vou para o centro da sala, me abaixo, seguindo a comanda.
Feito isso ele agarra meus dois pés e os empurra para minhas costas, foi doloroso mas nem tanto, em seguida ele os empurra ainda mais, dessa vez alcança a cabeça, isso dói mais que o anterior mas eu não consigo gritar na posição em que eu estava. Eu era praticamente um rolo humano.A aula acabou, nada de novo além de, Beatrice não aparecer novamente. Tento não me preocupar, embora soubesse que não poderia fazer nada a respeito, os pais dela me repudiavam agora.
Vou para casa em silêncio, com o pensamento em Beatrice e sem perceber...sem perceber o estranho que me seguia.