Já sentiu como se todos que já conheceu do nada fossem descartados, sumissem? E você não sabe como, nem onde achá-los?Eu achava que tudo iria ficar bem, mas eu estava prestes a ficar paranóica. Resumindo, na noite anterior cometemos um atentado à casa de meu pai, quebramos muita coisa, enfiamos um cano num homem de 47 anos, destruímos a sanidade de uma mulher de 32 e eu perdi a consciência. Acordei num vagão de trem, parado. Gus me olhava preocupado e Anastasya estava com os pés pendurados para fora do vagão com um cigarro na mão. Me assustei ao ver a figura única de Jeanine. Ela não parecia bem, estava com hematomas pelo corpo que apareciam nos braços e canelas por baixo do vestido azul florido que se estendia até o joelho, ela estava com olheiras enormes, uma expressão assustada, cabelos extremamente embaraçados e bagunçados que ela, na tentativa de parecer civilizada, sã e normal, escondia em uma trança frouxa. Ela mexia as mãos inquietamente e balbuciava querendo urgentemente falar algo, algo que não saía. Mas algo que repentinamente saiu.
-Eu sinto muito pela Beatrice. -Eu esperava uma explicação sobre o que aconteceu com ela, não um lamento sobre alguém que saiu da minha vida como se fosse um assassinato sem provas, nem testemunhas, e até mesmo sem a própria vítima.
-O que aconteceu com ela, ninguém me conta nada, ah, não quero saber, é um novo dia, uma nova vida e eu não quero mais sentir dor. -Meus lábios estavam dormentes por conta do corte que cicatrizava diariamente e se abria um pouco a cada vez que eu comia.
-Ela...o pai dela...a mãe...
-Madrasta! Madrasta... eu não quero ouvir mais nada.
-Lotte...
-Não me chame assim! -Grito abaixando a cabeça e fechando os olhos, agarrando meus joelhos em cima do cobertor felpudo que me aquecera à noite.
Jeanine soluçou agarrando a boca, saltando do vagão com rapidez. Anastasya me olhava com repreensão, ela desce do vagão ainda com o cigarro na mão.
-Gus, ela quer ficar sozinha. Anastasya lia meus pensamentos como ninguém. Gus se levantou do barril perto das caixas de madeira provavelmente com grãos dentro e pôs-se para fora do vagão.
O sol inundava meia parte do vagão, incluindo o lugar onde eu estava. Eu queria mesmo a companhia do sol? Me levanto tirando a poeira da roupa e os pedaços de lã do cabelo. Desço do vagão pelo outro lado aberto, um bosque à minha frente. É pra lá mesmo que eu sigo. Árvores de copa média, verde amarelado, já dava para perceber o que a tecnologia da época estava fazendo à natureza, o chão do bosque estava seco, não chovia há muito tempo. Me sentia anestesiada, sentei-me em uma pedra e respirei fundo. Semicerrei os olhos ao olhar para a árvore à minha frente e ver uma folha pregada. Me levanto para ver o que estava escrito. Oh, era um cartaz de criminosos procurados. Jeanine estava nele, sua recompensa era miserável.
"PERIGO! Procura-se, piromaníaca foragida, ao avistar essa mulher fuja em segurança e chame a autoridade mais próxima!"
-Besteira; Jeanine não faria mal à uma mosca. -Recuo e volto a me sentar na pedra.
Eu olho para o céu, as copas das árvores quase tampavam a vista inteira. A luz dourada do sol passava reluzindo por entre as folhas, que balançavam suavemente com o vento. Suavemente porque o vento mal chegava ali, era muita árvore pra um pequeno bosque.
-Deve ter visto o cartaz, não? -Viro-me impulsivamente. Era Anastasya.
-É, eu vi.
-É verdade.
-O que? -Me assusto. -Jeanine é uma maníaca incendiadora?
-É uma doença, ela não pode controlar, você também o faria, não é exatamente por gosto, é por necessidade. -Respondeu enquanto se aproximava.
-Mas ela feriu alguém?
-Não só feriu, não só uma. -Disse um pouco chateada em tom sério. -Fazemos o possível para mantê-la distraída, longe de fósforos e perto de nós, mas as vezes ela sai para beber à noite, volta só de manhã toda chamuscada.
-Nunca te vi falar tão seriamente, sabe tanto sobre essa doença assim?
-Muitos parentes meus tem essa doença, aparentemente é hereditário.
-Eu sinto muito...espere! Então Jeanine é sua parente?
-Pelos deuses...piedade, aquilo não teria o meu sangue nem se transplantasse. Brincaderinha, ela é minha meia irmã, não fui eu que te contei. -Disse mais com as mãos do que com os lábios.
-Você se preocupa em manter isso em segredo? -Disse me levantando.
-Ela, ela se preocupa haha, ela não gosta que me comparem a ela, você sabe, essa coisa de irmão é tão "jogo dos sete erros"...
-Ah sim, mas...qual é a história de vocês duas?
-Hmmm, acho que posso te contar. -Disse levando o dedo ao seu delicado queixo.
Olho em seu rosto esperando uma continuação.
-Mas não aqui, dã. -Disse me puxando pelo braço.
Fomos até um riacho, um pouco mais longe dali e bem silencioso. Havia apenas o som da água, dos pássaros e das folhas.
-Não conte a ninguém. Vamos lá. Ammn, não sou daqui, nasci em Florença, minha mãe se chamava Juliet, e não sei por quê, mas eu sinto que esse nome será muito usado algum dia. -Contou enquanto acariciava o redor de seus olhos. -Meu pai era um bêbado maldito, submisso, ele cedia aos desejos de minha mãe, mas era por isso que bebia. Uma noite eu saí do quarto para beber um copo d'água na cozinha, eu passei pelo corredor e vi minha mãe no banheiro com a porta aberta, ela estava com um pano na boca, chorava de dor enquanto enfiava a ponta de madeira do desentupidor na sua vagina. Ela sangrava muito, anos depois descobri o que aquilo significava, eu poderia ter uma irmã. Mas aí você pensa, "que pena, Anastasya" but no, eu tive essa irmã, um dia eu lhe apresento. Enfim, vamos, já está escurecendo.
-Como assim escurecendo? -Perguntei confusa.
-Você pensa que acordou de manhã? Risos.
Saímos do bosque pela trilha que fizemos anteriormente e seguindo o caminho por onde eu tinha vindo ao sair do vagão, passamos ao lado do vagão e o vimos quase vazio, pelo que parece estavam tirando as coisas de dentro do vagão para alojar debaixo da lona do circo que já estava montada.
-Não iremos passar a noite aqui, Gus vai falar com o pessoal do circo sobre você ficar com a gente e consolar Jeanine enquanto vamos à um hotel.
Nod, eu a sigo pelas ruas que iam escurecendo, apreciando um céu de muitos tons de laranja, azul e rosa.