Prólogo

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Sequei mais uma teimosa lágrima que escorreu, elas insistiam. Assoei o nariz remelento. Eu queria não estar ali. Mas eu sei que preciso.

Não poderia me permitir o deixar ir embora deste mundo.

Sem meu último adeus.

Ele já beirava seus noventa e sete anos, estava hospitalizado já havia dois meses, por causa de uma artéria que insistia em tirar-lhe a vida. Ele estava encolhido no colchão, como uma criança fragilizada. Isso doía no mais profundo do meu coração. Isso não me lembrava o homem energético, corajoso que ele um dia foi. A vida não era nada mesmo.

Mordi meu lábio, sentindo gosto metálico, rapidamente a ferida aberta cicatrizou-se. Queria poder não vê-lo partindo. Queria ter nas minhas lembranças só as nossas gargalhadas, e matanças de aulas entediantes de literatura inglesa, nossas idas a discoteca mais badalada da cidade, isso já fazia mais de setenta anos, mas me lembrava perfeitamente do sorriso de menino travesso que ele me dava quando dizia que era a canção que ele mais gostava de tocar.

Meus olhos encheram-se novamente de lágrimas, com meu queixo tremulo, vi quando sua esposa agarrou sua mão, e pedia a ele que não fosse embora sem ela. Ele chorou. Ele a amava. Isso me fez sentir uma pitada de ciúmes, mordi novamente o lábio com ainda mais força. Eu não tinha o direito de sentir ciúmes.

Fui que o abandonei ele primeiro. Não tinha o direito de estar ali ressuscitando o velho passado que só trazia dor para nós dois.

Dei meia volta, decidida a ir embora. Ele estava feliz, e ele morreria ao lado da mulher que nunca o abandonou. Este era o certo a se fazer.

Mas todo o meu mundo parou, no momento que vi ela passar por mim. Nós não éramos amigas, mas conhecíamos muito bem uma a outra. Na verdade, nunca havíamos conversado. Ela sabia da minha existência e eu a dela, mas isso não nos importava. Porque ela fazia seu trabalho e eu fazia o meu. O meu era amar as pessoas em todos os segundos de suas vidas, e o dela, era tirar a vida das pessoas que eu amava. Ela era A Morte.

Era doloroso vê-la chegar, mas era assim o ciclo da minha vida. Ela ajeitou o chapéu, e acenou com a cabeça me cumprimentando, fiz o mesmo, trocamos um olhar silencioso. Ela pode estar levando mais uma pessoa que amei, mas isso não significaria que seria mal-educada. Afinal, fazíamos esta mesma cena há quase sete séculos, não seria apropriado de minha parte odiá-la.

Ela entrou no quarto, e senti como se minha pele fervesse, eu sabia bem o que estava prestes a acontecer. Meu corpo estava sendo transladado. Estava de frente para ele mais uma vez. Sabia que era impossível fugir disso. Mas sempre preferi tentar ao máximo, mas quando não fosse possível, estaria ali presente, contra a minha vontade. Ela passou a mão com gentileza na testa dele, acalmando-o, deu um sopro calmo em seu rosto, e vi quando ele olhou para mim. Eu não queria me mostrar para ele, mas tenho certeza que passar desta vida para outra, olhando um rosto que reconheça, é mais reconfortante.

Sorri daquele velho jeito que sempre sorri, vi nos seus olhos o amor que ele ainda guardava por mim. Meu queixo tremeu. E o sorriso dele foi pequeno, mas para mim foi tão significante que poderia guardar para sempre dentro de mim. Eu me mantive ali parada, vendo-a trabalhar.

Num momento os olhos dele refletiam todo o amor que havia no mundo. E no outro, seus olhos perdiam o brilho do jovem rapaz de dezessete por quem havia me apaixonado.

Ela tinha os olhos cheios de lágrima também, mas ela como uma profissional que era, não se deixou por levar, pelos gritos de desespero dos familiares dele. Nem pelo choro angustiante deles, ela era muito forte, sinceramente, se eu pudesse pedir para ser alguém quando crescesse, queria ser ela. Ela fazia o que tinha que ser feito, mesmo que fosse chorando.

Violet - único amor da minha vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora