Meus passos são constantes, quase como se fossem programados. Conforme caminho, deixo pegadas profundas na neve. Com exceção de mim, o restante de minha família encara os próprios pés, sem ousar erguer o olhar. A sensação de derrota unida à melancolia que impregna o ar causa-me mais arrepios do que o congelante clima de inverno do vilarejo de Rouda.
O céu antes nublado começa a desbotar, cedendo espaço para um vasto carpete azul-escuro estrelado. O vento gélido, entretanto, ainda uiva em meus ouvidos, arrancando para fora de meu capuz cinzento algumas madeixas cor de chocolate que dançam ao ritmo da ventania. Não sei como meu sangue ainda não solidificou.
Acelero o ritmo até estar ao lado de meu irmão, que envia-me um olhar pelo canto dos olhos. Ele abraça ao próprio corpo, seus dentes tamborilando dentro da boca.
A pele amorenada de Ryne parece mais pálida que o de costume, o que ressalta as marcas em suas têmporas. Duas pequenas circunferências prateadas, quase fluorescentes, as quais pertencem a ele desde que nascera. Marcas idênticas às minhas e às de qualquer outro tascaro. Uma maldição, é o que dizem os boatos. Uma forma de deixar mais nítida a divisão entre dominantes e dominados, de ressaltar que somos inferiores e submissos. Não que isso seja realmente necessário, claro. Basta uma olhada em nossas condições que isso já é esclarecedor o bastante.
Ao meu lado esquerdo, a extensa floresta de Galak exubera graça. As altíssimas e variadas árvores jorram vida. Desde pequena, sempre quis adentra-la, porém o poderoso campo de força que a circula só pode ser ultrapassado por magia, e, nessas redondezas, só os veronianos possuem magia. Sem mágica, a barreira é indestrutível.
A floresta é uma fronteira natural entre Tascar e Verona, mas, de certa forma, os limites da floresta tem uma utilidade parecida com as de grades para aprisionar nós, tascaros. Como somos um povo desprovido de poderes, não há como fugir, como entrar, ou quem sabe até invadir, territórios veronianos. Um ótimo meio de garantir o controle sobre uma colônia, devo admitir.
Como se atraída pela magnífica flora e fauna há apenas metros de distância, aproximo-me do campo de força enfeitiçado. Delicadamente, retiro as mãos que mantinha nos bolsos de minha capa e acaricio as ondas invisíveis que tornam-se azuis ao toque. Um pequeno sorriso se forma em meus lábios. Eu daria de tudo para viver em um lugar tão pacífico quanto aquele.
Um olhar para meu irmão já é o suficiente para ver o quanto ele desaprova o meu comportamento, mesmo ambos sabendo que não corro risco algum. Faço uma careta, tentando imitar sua carranca. Devo ter ficado ridícula, pois seus lábios giram levemente para cima enquanto ele desvia os olhos para outra direção.
Começo a perceber que há mais veronianos nas ruas do que o de costume em um dia de Purgação. Eles vagam em pequenos bandos, enviando-nos olhares predatórios. Faço o melhor para não demonstrar meu desconforto, mantendo uma expressão neutra durante todo o percurso.
Não tenho a mínima ideia de aonde estamos indo. Meu pai não falou uma única palavra desde que saímos de casa, há quase uma hora. Suas costas estão curvadas e seu pescoço forçado. Ele aparenta ter mais idade do que realmente tem, seus ralos fios grisalhos não ajudando a amenizar a impressão. Mesmo curiosa, não o incomodo. Ele me respeitou quando pedi por privacidade, então decidi que o respeitaria também. Mas Ryne parece não ter a mesma disposição.
— Estou cansado. Para onde vamos?
— Para uma estalagem que conheço — responde meu pai.
— E você não conhecia alguma mais próxima de nossa antiga casa? — Antiga casa. As palavras dão voltas em meu estômago.
— Não quero ir para qualquer estalagem.
Ryne assente, apesar de claramente não compreender aonde o homem quis chegar com suas palavras. Tampouco compreendo eu, mas não me importo. Hoje foi um dia tanto emocionalmente quanto fisicamente cansativo. Tudo o que desejo é um bom prato de comida e uma cama quentinha. Se o lugar para onde nosso pai está nos levando pode me garantir essas coisas, não irei protestar.
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Nevoada
ФэнтезиVocê conseguiria não se perder quando tudo que resta é a perdição? Agora uma sem-teto, Emery Harvord terá que sobreviver a muito mais do que apenas as ruas quando um estranho genocídio arrasa o pequeno vilarejo onde vive. Isolada com suas dúvidas, a...