Anos Dourados do Grotesco

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- Meu amor por Rita foi forte, intenso, destrutivo. Eu a amava com todas as forças. Mas ela? Runf, ela apenas me ignorava com todas as forças. Ignorava de certa forma, já que quando ela precisava de mim, me tratava como um rei.

- Vocês tiveram um relacionamento, afinal?

- Não.

- Quando foi que vocês se conheceram?

- 1973.

- Onde?

- São Paulo. Você quer descobrir quem roubou a buzina ou quer escrever um romance baseado na gente?

Ana olhou o homem que ostentava o rosto pintado de branco, o contorno dos olhos e a boca de preto, uma lágrima feita de lápis, um terno também preto com uma flor gigantesca vermelha e um chapéu combinando com o terno.

- Não, senhor. Não​ gosto de escrever sobre amores platônicos. Passar bem. - A moça respondeu já irritada com o homem, que a tratou com frieza e desprezo desde o começo do interrogatório.

- Vai dizer que nunca se apaixonou por alguém que não sentia o mesmo?

- Não, nunca. Nunca perdi tempo me iludindo.

- Entendo...

- Posso ir agora? - Perguntou Ana já saindo pela porta, sem esperar a resposta.

Por mais improvável que pareça, era verdade, Ana nunca se iludiu. Apenas uma vez , na escola, se apaixonou pelo amigo achando que ele sentia o mesmo e se decepcionou. Desde então, teve alguns casos carnais, mas nada que a tirasse do chão e causasse borboletas no estômago. Ao passar pela porta que dava à um velho salão de festas, Ana ouviu um piano e uma voz grave que lembrava a de Sinatra. No impulso entrou e deu de cara com o homem que tinha interrogado mais cedo. Ele estava sentado em cima do piano, cantarolando uma música inglesa.

It's a god-awful small affair
To the girl with the mousy hair
But her mummy is yelling "No"
And her daddy has told her to go...

But her friend is nowhere to be seen Now she walks through her sunken dream
To the seat with the clearest view
And she's hooked to the silver screen But the film is a saddening bore
For she's lived it ten times or more
She could spit in the eyes of fools
As they ask her to focus on
Sailors fighting in the dance hall
Oh man! Look at those cavemen go
It's the freakiest show
Take a look at the Lawman
Beating up the wrong guy
Oh man! Wonder if he'll ever know
He's in the best selling show
Is there life on Mars?

Ana sentiu seus olhos marejados. A interpretação dele era incrível, a música era maravilhosa, e a voz não ficava atrás. "Life on Mars?" sempre foi sua música favorita, era como se contasse a história dela, se falasse sobre ela...

- O que foi, menina? - o homem perguntou, tirando-a de seus devaneios lunares.

- É que...isso foi lindo! Inclusive, qual seu nome?

- Jack Stardust.

- Não, seu nome de verdade, não o artístico.

- Mas esse é meu nome. Troquei de nome quando tinha 18 anos.

- Okay, senhor Jack.

- Olha, nesse tempo que ficamos separados, fiz uma música pra você.

- Uma musica para mim? Mas nós nos vimos há 10 minutos atrás...

- 10 minutos é mais que o suficiente quando se é um artista de verdade. Ré maior, por favor.

A fantasia anda a cavalo
Galopando nos pastos da dor
Só quem já sofreu de verdade
Conheceu o amor

Estamos nos anos dourados do grotesco
Quem paga o preço é quem pede pra amar

Quem nessa idade
Já conhece toda a vaidade
Tem tanta sagacidade
A ponto de não se iludir?

A vida não é assim
Não é fácil saber onde ir
O mundo é frio e vazio
Quem sorriu, sorriu
Quem não riu, não rirá

Estamos nos anos dourados do grotesco
Quem paga o preço
É quem pede pra amar

Ao final da performance extravagante de Jack, Ana se viu perdida mais uma vez. Perdida naquele mundo de glitter e glamour decadente que nem queria ter entrado. Recolheu suas coisas e saiu correndo, sem dizer uma palavra.

- Menina, não se prive de amar. Não deixe que as pessoas ruins tirem isso de você. - Jack falou vendo a menina sair sem nem olhar pra trás, achou até que ela não tinha ouvido, mas ela ouviu tudo.

Rita MalaguetaOnde histórias criam vida. Descubra agora