CAPÍTULO XI

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Frédéric Chopin - Prelude in E-Minor op.28 n.4

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“Harriet, pobre Harriet!”... Essa so foram as palavras; nelas repousavam as idéias atormentadas das quais Emma não conseguia se livrar, e que constituíam a verdadeira infelicidade que sentia diante de toda a situação. Frank Churchill tinha se comportado muito mal em relação a ela – e de vários outros modos também – mas não era tanto o comportamento dele, mas o dela mesma, que a deixava tão zangada com ele. Era a enrascada na qual Frank Churchill a envolvera por causa de Harriet que dava um tom mais profundo à ofensa dele.
Pobre Harriet!... Pela segunda vez seria a vítima das suas concepções erradas e lisonjas. Mr. Knightley havia sido profético quando dissera: “Emma, você não tem sido amiga de Harriet Smith”. Temia que não tivesse feito nada por ela além de prestar-lhe um desserviço. Era verdade que não tinha nada por que culpar-se agora, como na outra vez, em que fora a única autora do engano, ao ter sugerido sentimentos que de outra forma nunca teriam sido cogitados por Harriet. Sua amiga havia falado da própria admiração e preferência por Frank Churchill antes que ela pudesse fazer-lhe qualquer insinuação a respeito. Sentia-se, porém, culpada por ter encorajado o que deveria ter reprimido. Devia ter evitado a indulgência e o aumento da força desses sentimentos. Sua influência teria sido o bastante. E agora tinha plena consciência de que devia tê-los impedido. Sentiu que pusera em risco a felicidade da amiga sem nenhuma base. O bom senso devia ter feito com que dissesse a Harriet que não devia pensar em Frank Churchill, e que havia quinhentas chances contra uma de que ele algum dia gostasse dela. “Mas, com bom senso,” ela pensou “temo que tivesse pouco a fazer”.
Estava muito zangada consigo mesma. Se não pudesse ficar zangada também com Frank Churchill teria sido terrível. Quanto à Jane Fairfax, podia finalmente aliviar seu coração da necessidade de alguma solicitude em relação a ela no momento. Harriet já constituía ansiedade suficiente para Emma. Não precisava mais ficar infeliz por causa de Jane, cujos problemas e cuja doença tinham, é evidente, a mesma origem, e deviam estar igualmente sendo curados.
Seus dias de privações e de ostracismo estavam terminados. Logo ela estaria bem de saúde, feliz e próspera. Emma podia agora imaginar por que suas atenções para com ela foram desprezadas. Essa descoberta esclarecia muitas pequenas questões. Não havia dúvida de que fora por ciúmes. Aos olhos de Jane ela era uma rival e, por isso, qualquer oferecimento de ajuda ou consideração devia ser recusado. Um passeio na carruagem de Hartfield teria sido uma tortura, e a araruta da dispensa de Hartfield devia estar envenenada. Ela entendeu tudo isso – e tanto quanto sua mente podia se distanciar da injustiça e do egoísmo provocados por sentimentos de raiva – dava-se conta que Jane Fairfaxnunca teria nem elevação nem felicidade além do seu deserto. Mas a pobre Harriet era um fardo tão pesado! Ela tinha pouca simpatia para dispensar a qualquer outra pessoa. Emma temia que esse segundo desapontamento fosse mais severo que o primeiro. Achava que podia ser assim, considerando-se o valor muito superior do segundo objeto de interesse. E devia mesmo ser assim, a julgar pelo seu efeito aparentemente mais forte na mente de Harriet, produzindo reserva e autocontrole. No entanto, ela devia comunicar a dolorosa verdade, e o mais cedo possível. Houvera um pedido de segredo nas palavras de despedida de Mr. Weston. “No momento, o caso todo devia ficar em completo segredo. Mr.Churchill fizera questão disso, como mostra de respeito pela esposa recentemente falecida; e todos concordaram que isso não era mais que o devido decoro”.
Emma havia prometido. Mesmo assim Harriet devia ser excluída da promessa, era sua obrigação contar-lhe.
A despeito da vergonha, não podia deixar de achar quase ridículo que ela tivesse que desempenhar em relação à Harriet a mesma tarefa angustiante e delicada que Mrs. Weston acabara de desempenhar junto dela. A informação que lhe fora dada com tanta ansiedade, Emma devia agora dar ansiosamente à outra.
Seu coração bateu mais forte ao ouvir os passos e a voz de Harriet, assim como o coração da pobre Mrs. Weston devia ter disparado ao vê-la se aproximar de Randalls. Se a revelação ao menos tivesse o mesmo desfecho! Mas quanto a isso, infelizmente, não havia a menor chance.
– Bem, Miss Woodhouse – exclamou Harriet, entrando ansiosamente na
sala – essa não é a notícia mais estranha do mundo?
– A que notícia se refere, Harriet? – respondeu Emma, incapaz de
adivinhar, pela voz ou pela expressão, se a amiga já recebera alguma informação a respeito.
– Sobre Jane Fairfax. Já ouviu alguma coisa mais estranha? Oh!... A
senhorita não deve ter medo de me contar, pois o próprio Mr. Weston me disse.
Acabei de encontrá-lo. Ele me falou que era um grande segredo. Eu não pensaria em mencionar isso para ninguém, a não ser a senhorita, mas ele disse que a senhorita já sabia.
– O que Mr. Weston lhe contou? – disse Emma, ainda perplexa.
– Oh! Ele me contou tudo sobre isso! Que Jane Fairfax e Mr. Frank Churchill vão se casar e que estiveram noivos em segredo por um bom tempo. Que estranho!
Era, de fato, muito estranho. O comportamento de Harriet era tão estranho que Emma não sabia como interpretá-lo. Parecia que seu caráter
mudara completamente. Estava decidida a não mostrar nenhuma agitação ou desapontamento, ou qualquer preocupação especial pela descoberta. Emma olhava para ela sem conseguir falar.
– A senhorita tinha alguma ideia – exclamou Harriet – de que ele estava apaixonado por ela? A senhorita talvez tivesse... (e ficando corada enquanto falava) É capaz de enxergar o que se passa no coração de qualquer pessoa. Mas ninguém mais poderia...
– Dou-lhe minha palavra – disse Emma – que começo a duvidar de ter algum talento desse tipo. Você pode me perguntar com seriedade, Harriet, se eu imaginava que ele estava comprometido com outra mulher ao mesmo tempo em que encorajava você a dar vazão aos seus sentimentos? Creio que o fiz pelo menos de forma tácita, se não abertamente. Nunca tive a menor suspeita, até uma hora atrás, de que Mr. Frank Churchill tivesse qualquer sentimento por Jane Fairfax. Pode ter certeza de que, se eu soubesse, teria prevenido você.
– A mim?! – exclamou Harriet, atônita e ruborizando intensamente – - Por que deveria me prevenir?... A senhorita não pode estar pensando que gosto de Mr. FrankChurchill...
– Estou encantada de vê-la falar com tanta firmeza sobre esse assunto –
respondeu Emma, sorrindo. – Mas não deve negar que houve um tempo, que não está muito distante, em que me deu razões para acreditar que estava interessada nele.
– Nele? Nunca, nunca... Querida Miss Woodhouse, como pode ter me
entendido tão mal? – virando-se angustiada.
– Harriet! – exclamou Emma, após um momento. – O que quer dizer com isso?... Deus do céu! O que quer dizer?... Entendê-la mal!... Devo supor, então...
Ela não podia dizer mais nenhuma palavra... Perdera a voz, e sentou-se, esperando aterrorizada pela resposta de Harriet.
Harriet, que estava sentada a alguma distância, e com o rosto virado para o outro lado, não disse nada por algum tempo. E, quando falou, sua voz estava quase tão agitada quanto à de Emma.
– Nunca pensei que fosse possível – ela começou – que a senhorita me
entendesse mal! Sei que combinamos de nunca mencionar o nome dele... mas considerando como ele é superior a todos os outros, não achei que fosse possível a senhorita pensar que eu falava de outra pessoa. Mr. Frank Churchill, realmente!
Não sei quem poderia olhar para ele na presença do outro. Espero ter um gosto bem melhor do que pensar em Mr. Frank Churchill, que não é ninguém ao lado dele. E que a senhorita tenha se enganado tanto, é espantoso! Eu acreditava que a senhorita aprovava e encorajava o meu afeto. Em princípio, considerei uma grande presunção de minha parte ousar pensar nele. Em princípio, se a senhorita não tivesse me dito que coisas mais espantosas já aconteceram, que já houve casamentos de maior disparidade (essas foram suas palavras exatas), eu não teria ousado me permitir... não teria pensado possível... Mas se a senhorita, que o conhece há longos anos...
– Harriet! – exclamou Emma, recompondo-se. – Vamos nos entender agora, de uma vez por todas, sem deixar qualquer possibilidade de engano. Você está falando de... Mr. Knightley?
– Por certo que estou. Nunca pensei em mais ninguém... e achei que senhorita soubesse. Quando falamos nele, ficou tão claro quanto possível.
– Nem tanto – respondeu Emma, com calma forçada – pois tudo que você me disse na ocasião parecia referir-se à outra pessoa. Eu posso quase jurar que você disse o nome de Mr. Frank Churchill. Tenho certeza que falamos do serviço que Mr. FrankChurchill lhe prestou, salvando-a dos ciganos.
– Oh, Miss Woodhouse! Como pôde se esquecer?
– Minha querida Harriet, lembro-me perfeitamente do teor do que eu
lhe disse naquela ocasião. Disse-lhe que não me surpreendia com o seu interesse, considerando o serviço que ele lhe prestou, e que era muito natural. E você concordou, falando calorosamente de sua consciência a respeito disso, e mencionando até mesmo o que sentiu quando o viu aproximar-se para salvá-la. Isso tudo está bem vivo na minha memória.
– Oh, Deus! – exclamou Harriet – Agora entendo o que quer dizer. Mas eu pensava em algo bem diferente no momento. Não me referia aos ciganos... nem a Mr. FrankChurchill. Não! (levantando-se) Pensava em uma circunstancia muito mais importante... em Mr. Knightley caminhando na minha direção e me convidando para dançar, quando Mr. Elton recusou-se a fazê-lo e não havia outro cavalheiro disponível no salão. Foi a essa boa ação que me referi, um ato de nobre generosidade e benevolência. Foi essa atitude que me fez pensar em como ele era superior a qualquer outro ser humano na face da terra.
– Meu bom Deus! – exclamou Emma – esse foi o mais infeliz... o mais deplorável dos enganos!... O que se pode fazer?
– A senhorita não teria me encorajado, então, se tivesse me
compreendido? Pelo menos não posso estar pior do que estaria, se o outro fosse a pessoa em questão. E agora, acho que existe uma possibilidade...Ela fez uma pausa por alguns momentos. Emma não conseguia falar.
– Eu não duvido, Miss Woodhouse – ela prosseguiu – que a senhorita veja uma grande diferença entre os dois, no que se refere a mim ou a qualquer outra pessoa. Deve achar que ele está quinhentos milhões de vezes acima de mim, muito mais do que o outro. Mas espero, Miss Woodhouse, que... mesmo que possa parecer estranho... A senhorita sabe que foram suas próprias palavras, que coisas mais maravilhosas já aconteceram, casamentos de maior disparidade já ocorreram, até mais do que entre Frank Churchill e eu. E se uma coisa como essa já ocorreu antes, e se eu for bastante afortunada para... Se Mr. Knightley realmente desejar, se não se importar com a disparidade, eu espero, minha querida Miss Woodhouse, que a senhorita não seja contra, que não tente colocar dificuldades no meu caminho. Mas a senhorita é boa demais para isso, tenho certeza.
Harriet estava parada junto a uma das janelas. Emma virou-se para ela, consternada, e disse apressadamente:
– Você tem alguma ideia se Mr. Knightley corresponde à sua afeição?
– Sim – respondeu Harriet, com modéstia, mas sem temor. – Devo dizer que sim.
Os olhos de Emma se fecharam imediatamente. Ela ficou sentada,
meditando em silêncio sem se mover por alguns minutos. Esses poucos minutos foram suficientes para que conhecesse os segredos de seu próprio coração. Uma mente como a dela, uma vez aberta para a suspeita, fazia progressos rápidos. Ela entreviu... ela admitiu... ela soube a verdade inteira. Por que sentia que era muito pior que Harriet estivesse apaixonada por Mr. Knightley em vez de Frank Churchill? Por que o mal se tornou ainda maior ao descobrir que Harriet tinha esperanças de ser correspondida? E a verdade atravessou sua mente, com a rapidez de uma flecha: Mr. Knightley não podia se casar com ninguém a não ser com ela.
Nesses poucos minutos, sua própria conduta, assim como seu próprio coração, estavam diante dela. Viu com clareza tudo que nunca vira antes. Como agira de modo impróprio por Harriet! Como sua conduta fora irracional, indelicada e sem consideração! Que cegueira, que loucura a tinham conduzido!
Foi atingida pela força terrível dessas revelações, e estava pronta a dar os piores nomes do mundo para o seu comportamento. No entanto, um pouco de respeito próprio, a despeito de todos esses deméritos, deu-lhe forças para sentar-se e suportar o restante com calma, até mesmo com aparente gentileza. Preocupava-se um pouco com sua aparência, e devia fazer justiça a Harriet, embora não necessitasse ter compaixão pela moça que acreditava ser amada por Mr.Knightley. Seu senso de justiça, porém, lhe dizia que não devia tornar Harriet infeliz, tratando-a com frieza. Para sua própria tranquilidade, de fato, devia perguntar a respeito da extensão das esperanças de Harriet. A jovem, afinal, não fizera nada para ser privada da amizade e do interesse que lhe tinham sido tão voluntariamente oferecidos, nem merecia ser desprezada pela pessoa cujos conselhos nunca lhe fizeram bem. Emma despertou dessas reflexões e, dominando a emoção, voltou-se de novo para a amiga. Com uma voz mais convidativa, retomou a conversa, pois o assunto que a introduzira, a incrível história de Jane Fairfax, estava quase esquecida. Nenhuma das duas pensava em outra coisa que não fosse Mr. Knightley e elas mesmas.
Harriet, que estivera mergulhada em um sonho nem um pouco infeliz,
ainda assim ficou muito contente de vê-lo interrompido pela maneira encorajadora de tão grande juíza e grande amiga como Miss Woodhouse, e precisava apenas de um estímulo para contar a história completa de suas esperanças com grande e emocionado deleite. Emma escondia melhor seu tremor do que Harriet, enquanto perguntava e ouvia, embora ele não fosse menor do que o da jovem. Mantinha a voz firme, mas sua mente estava bastante perturbada por essa descoberta de si mesma, pela eclosão de um mal traiçoeiro e pela confusão e perplexidade de emoções inesperadas. Ouviu os detalhes contados por Harriet com grande sofrimento interior, mas aparentando paciência. Não podia esperar que o relato dela tivesse qualquer método ou arranjo conveniente de idéias, ou mesmo que fosse bem descrito. Mas quando se separava toda a fraqueza e tautologia da narração, continha o bastante para deprimir seu espírito, ainda mais com as circunstancias que o corroboravam, que sua própria memória adicionava em favor da alta opinião que Mr. Knightley tinha de Harriet.
Harriet notara uma diferença no comportamento dele desde aquelas duas danças decisivas. Emma sabia que Mr. Knightley, naquela ocasião, achara Harriet muito superior às suas expectativas. Desde aquela noite, ou pelo menos desde que Miss Woodhouse encorajou-a a pensar nele, Harriet começou a notar que ele conversava com ela muito mais do que costumava, e falava de uma maneira diferente, com mais gentileza e suavidade! Nos últimos tempos estava cada vez mais consciente disso. Quando estavam todos caminhando juntos, ele com frequência vinha caminhar ao lado dela, e falava de maneira tão deliciosa! Parecia querer conhecê-la melhor. Emma sabia que esse era exatamente o caso.
Ela tinha notado a mudança, quase com a mesma extensão da amiga. Harriet repetia expressões de aprovação e elogios a Mr. Knightley que, pelo que Emma sabia, estavam bem de acordo com a opinião dele sobre Harriet. Ele a elogiara por ser uma moça sem artifícios ou afetação, por ter sentimentos simples, honestos e generosos. Ela sabia que ele vira essas qualidades em Harriet, falara delas com Emma mais de uma vez. Muito do que Harriet guardara na memória, vários pequenos detalhes das atenções que recebera dele, um olhar, uma fala, uma mudança de cadeira, um cumprimento implícito, uma suposta preferência, não foram notados por Emma porque ela não tinha suspeita alguma.
Circunstâncias que poderiam intensificar um relacionamento de meia hora, e que continham muitas provas para ela que as vira, passaram-lhe despercebidas, e agora as reconhecia ao ouvi-las. Mas as duas últimas ocorrências que Harriet mencionara, e que continham as maiores promessas para ela, foram também testemunhadas pela própria Emma. A primeira fora a caminhada dele ao lado dela, separados dos demais, na alameda de limeiras em Donwell, onde andaram caminhando por algum tempo antes de Emma juntar-se a eles. Parecia que ele tomava cuidado (como Harriet estava convencida) de afastá-la dos outros para retê-la junto a si. Pela primeira vez falara com ela de forma particular, como nunca falara antes. De modo bastante particular, na verdade! (Harriet não conseguia lembrar-se disso sem corar). Ela parecia quase a ponto de perguntar se sua afeição já estava comprometida... Mas assim que ela (Miss Woodhouse) se aproximara com a intenção de juntar-se a eles, ele mudou de assunto e começou a falar sobre a fazenda. A segunda fora quando Mr. Knightley sentara-se com ela conversando por quase meia hora, enquanto esperavam Emma voltar da sua visita, exatamente na última manhã em que ele estivera em Hartfield, mesmo tendo dito, quando chegou, que não poderia ficar mais do que cinco minutos. E ele contou-lhe, durante essa conversa, que embora estivesse indo para Londres, deixava sua casa muito contra a vontade. Isso era muito mais (Emma sentiu) do que ele havia dito a ela. Esse grau de confiança em relação à Harriet, mostrado apenas por esse fato, causou-lhe enorme dor.
Depois de alguma reflexão em relação à primeira das duas circunstâncias, Emma aventurou-se a perguntar:
– Será que ele não pretendia, quando lhe perguntou, como você imagina, sobre o comprometimento de sua afeição... Será que ele não estava se referindo a Mr. Martin?... Ou tinha o interesse de Mr. Martin em vista? Mas Harriet rejeitou a suspeita com veemência.
– Mr. Martin? Oh, não, de forma alguma!... Não houve nem sequer uma insinuação sobre Mr. Martin. Espero me conhecer melhor agora, a ponto de não me interessar por Mr. Martin, ou ser suspeita de fazê-lo.
Quando concluiu o seu relato, Harriet apelou para sua querida Miss Woodhouse, para dizer-lhe se tinha motivos para ter esperanças.
– Eu nunca teria a pretensão de pensar nisso, no início – disse ela – se não fosse a senhorita. Foi a senhorita que me disse para observá-lo cuidadosamente e deixar que o comportamento dele servisse de guia para o meu.
E assim fiz. Mas agora sinto que posso merecê-lo. E se ele me escolher, isso não será uma coisa assim tão extraordinária.
Os amargos sentimentos provocados por essa declaração, os muitos sentimentos amargos, na verdade, exigiram um último esforço da parte de Emma, de forma a poder dar uma resposta para Harriet.
– Harriet, a única coisa que ouso dizer é que Mr. Knightley é o último homem no mundo que intencionalmente daria para qualquer mulher a ideia do
sentimento dele por ela ser maior do que realmente é.
Harriet parecia disposta a adorar a amiga por uma resposta tão satisfatória. Emma só foi salva de suas expressões de profundo afeto e gratidão, que nesse momento teriam lhe causado uma terrível dor, pelo som dos passos de seu pai. Ele vinha para o vestíbulo. Harriet estava muito agitada para encontrá-lo.
“Ela não conseguia se recompor, Mr.Woodhouse ficaria alarmado, era melhor ela ir”... Com o mais pronto encorajamento da parte de Emma ela passou pela outra porta da sala. No momento em que Harriet saía da casa, Emma desabafou seus sentimentos, dizendo a si mesma: “Oh, Deus! Gostaria que nunca a tivesse visto”.
O resto do dia e a noite que se seguiu mal foram suficientes para seus pensamentos. Estava perplexa com a confusão de tudo que a acometera nas últimas horas. Cada momento trazia uma nova surpresa, e cada surpresa devia ser motivo de humilhação para ela. Como compreender tudo aquilo? Como entender as decepções que ela mesma provocara para si, e viver com isso? Os enganos, a cegueira de sua própria mente e coração! Ela ficara sentada pensativa, caminhara pelos jardins, tentara ficar no quarto, tentara passear no bosque... Em cada lugar, em cada atitude, percebeu que agira com fraqueza, que lhe fora imposto pelos outros o mais alto grau de sofrimento, e que ela mesma se impusera um grau de sofrimento ainda maior. Que estava infeliz, e que no futuro descobriria que esse dia era apenas o começo do seu sofrimento.
Tentar compreender, compreender totalmente seu próprio coração, era o primeiro esforço. Para isso utilizaria qualquer momento livre que seus cuidados com o pai permitissem, e qualquer momento de distração involuntária.
Há quanto tempo Mr. Knightley se tornara tão querido para ela, como cada sentimento demonstrava agora que ele era? Quando a influência dele, aquela influência, começara? Quando ele alcançara esse lugar na sua afeição que Frank Churchill ocupara uma vez, por pouco tempo? Ela olhou para o passado e comparou os dois... Comparou-os pelo lugar que sempre ocuparam em sua estima, desde o momento em que conhecera o último... E como deviam ter sido comparados por ela há muito tempo. Oh! Que abençoada felicidade se tivesse lhe ocorrido fazer essa comparação antes! Percebeu que nunca houve um tempo em que não tivesse considerado Mr. Knightley infinitamente superior, ou que seu afeto por ela não fosse infinitamente mais apreciado. Percebeu que, convencendo-se de certas coisas, fantasiando, agindo contra as circunstâncias, incorrera no mais completo engano, ignorando totalmente seu próprio coração... E, em suma, que nunca se importara com FrankChurchill, afinal de contas!
Esta foi a conclusão da primeira série de reflexões. Este foi o
conhecimento de si mesma que alcançou com a primeira inquirição, e sem demorar muito a consegui-lo. Estava indignada e triste, envergonhada de cada sensação, menos da que se revelara a ela: sua afeição por Mr. Knightley. Tudo o mais em sua mente era repulsivo.
Com que insuperável vaidade ela acreditara estar de posse do segredo do coração de todas as pessoas, com que imperdoável arrogância se propusera a arranjar o destino dos outros! Provou estar universalmente errada, e não conseguira quase nada... apenas causar mal. Causara mal a Harriet, a si mesma, e temia que a Mr. Knightley também. Caso essa união, que era a mais desigual do mundo, chegasse a acontecer, ela deveria arcar com o desgosto de ter começado tudo, pois o afeto dele só poderia existir pela consciência do afeto de Harriet. E mesmo que não fosse esse o caso, ele jamais teria reparado em Harriet se não fosse a sua loucura. Mr. Knightley e Harriet Smith! Era uma união para provocar choque e espanto além de qualquer imaginação. A ligação entre Frank Churchill e Jane Fairfax tornava-se apenas um lugar comum comparada a essa, apenas uma bobagem que não causaria a menor surpresa, não mostraria a menor disparidade, nem provocaria comentários de espécie alguma. Mr. Knightley e Harriet Smith! Que elevação seria para ela! Que queda seria para ele! Era horrível para Emma pensar em quanto isso o diminuiria perante a opinião pública. Previa os sorrisos de chacota, os narizes torcidos, o divertimento que causaria. O sofrimento e o desprezo de seu irmão, e outras milhares de
inconveniências para si mesmo. Será que isso poderia acontecer? Não, era impossível. E, no entanto, estava longe, muito longe, de ser impossível. O que há de novo em um homem de primeira classe ser cativado por uma jovem de nível inferior? O que havia de novo em um cavalheiro, talvez muito ocupado para procurar, ser o prêmio de uma moça que o procurasse? Seria isto uma novidade no mundo por ser desigual, inconsistente, incongruente... ou pelo fato do acaso e as circunstâncias (como segundas causas) dirigirem o destino humano? Oh! Se ao menos não houvesse incentivado Harriet! Se a tivesse deixado no lugar a que pertencia, e ao qual Mr. Knightley lhe dissera que ela pertencia!... Se não tivesse, com uma tolice que não havia palavras para expressar, impedido que ela desposasse o irrepreensível jovem que a teria feito feliz e respeitável no nível de vida a que ela devia pertencer – tudo poderia ter sido salvo. Nenhum desses terríveis acontecimentos teria ocorrido.
Como Harriet tivera a presunção de levantar os olhos para Mr.Knightley ? Como ousara imaginar que pudesse ser escolhida por tal homem, até ter quase certeza disso? Mas Harriet estava menos humilde, tinha menos escrúpulos do que antes. Parecia perceber muito pouco sua inferioridade, fosse de mente ou de situação. Parecera mais sensível à possibilidade de Mr. Elton não querer casar-se com ela, do que mostrava sentir agora com Mr. Knightley. Ah!
Por acaso isso também não era obra dela? Quem se dera ao trabalho de dar ideias de grandeza a Harriet, se não ela? Quem, se não ela, ensinara Harriet a elevar-se o mais possível e a pensar que tinha direito a conseguir um lugar melhor no mundo? E se Harriet passara de humilde a vaidosa, também era obra sua.

Emma - Jane AustenOnde histórias criam vida. Descubra agora