Revelação

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Pode se recordar do cheiro da casa da tia Ann? Cheiro de torta. A cada dia que se passava, parecia que seria necessário tomar cada vez mais fôlego e trazer cada vez mais memórias para que Jani se lembrasse do cheiro doce e familiar. Na verdade, o lugar agora não tinha cheiro de mais nada. Margaret estava cada vez mais ausente para a pequena filha, nunca estava por perto, na verdade esta não estava mais nem presente na própria casa de sua irmã e sempre que a sorridente tia Ann era questionada por sua sobrinha sobre onde estava sua mãe, a resposta era a mesma:

–Sua mãe não está, ela foi passear por um tempo... Mas eu estou aqui para cuidar de você e lhe fazer companhia.

E logo depois Jani era mandada para brincar em seu quarto, com as caixas de lápis de cera que havia levado para a casa de sua tia, que tinha um interesse quase estranho pelo que a sobrinha desenhava e as cores que usava para preencher o espaço em branco, tanto que se sentava ao lado da pequena quando a via desenhar. Na maioria das vezes, seus desenhos eram sobre Susan e Elize, sobre Calalini, Four Hundred e Wednesday; Toda vez que os desenhava pensava no quanto pesava em seu coração a falta daqueles que a entendiam tão bem.

Os dias passavam-se devagar, com apenas Jani e tia Ann, todos os dias a rotina foi quase idêntica, o café da manhã, o almoço, o lanche e o jantar eram servidos todos os dias pontualmente e tia Ann era rígida sobre o horário de dormir.

Todos os dias tiveram a mesma rotina a não ser por aquela noite, a noite em que Jani viu Susan debruçada sobre a janela de seu quarto com seu vestido azul celeste completamente sujo de terra, olhando a noite enquanto o vento gelado bagunçava seus cabelos negros. Aquela cena fez a jovem Jani sentisse seu corpo arrepiar-se completamente enquanto um choque gélido o penetrava, e logo as perguntas começaram a martelar em sua mente :

Como aquilo era possível? Como Susan havia conseguido chegar ali? Como sabia onde tia Ann vivia? Como sabia que Jani estaria ali? Como? Como? Como?

–O que está fazendo aqui? –Perguntava a garotinha que vestia uma camisola branca, pronta para dormir. –Como chegou na casa da tia Ann?

Susan primeiramente virou-se para Jani com uma expressão amedrontadora, os olhos arregalados, a pele pálida, olheiras escuras e os lábios rubros, feridos por pequenos cortes. Aparentava alguém que não dormia, um cadáver que fora escondida em algum lugar sujo e repleto de terra.

–Sabe Jani, você tem pensado muito em mim... Sente a minha falta, não é? Sente falta de Calalini e de brincar comigo?

–S-Sinto... Como sabe que pensei em você? –A garotinha caminhava para trás, sem tirar os olhos de Susan, até que suas costas encostavam-se na parede gelada do quarto. –Você não vai me responder?

–Por enquanto não... Você sente apenas minha falta, não é? Não sente falta de Elize, nem de Wednesday e nem de Four Hundred... Muito menos de nossos outros amigos, apenas sente a minha falta, não é?

Susan se aproximava da garota cada vez mais enquanto um sorriso começava a rasgar sua face de mármore, seus olhos escuros viam através dos olhos de Jani, viam seu coração bater depressa, quase desesperado para fugir daquela situação. Aquela sim era uma sensação deliciosa para a mais velha, o desespero.

–Sinto falta de todos... Sinto falta de você!

–Sente falta deles? Mas eles não existem... Nem ao menos está onde acha que está... Casa da tia Ann você diz? Quem está aqui com você além de mim?

–Quem está aqui? Ve... Vejamos... A tia Ann e Four Hundred... Não. A mamãe e o papai e… Elize? Wedenesday e papai? O-Ou... A tia Ann e Jessica? Não, não gosto de Jessica, não a quero aqui... Quem está aqui? - A pequena levava ambas as mãos à cabeça, como surgisse uma dor que aumentava gradativamente até que Jani estivesse de joelhos no chão, até que Jani perdesse sua consciência.

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Jani não estava na casa de sua tia na manhã seguinte, ela não sentia quase nada, como se estivesse anestesiada, além disso, ela também não estava sozinha, Susan estava lá, sentada numa cadeira ao lado da cama em que Jani dormia, com um sorriso no rosto e balançando seus pés para frente e para trás, descalça.

O local parecia-se com um quarto de hospital, onde havia a cama onde Jani estava deitada, a cadeira de madeira branca onde Susan balançava seus pés, no canto do quarto havia uma mesa com folhas em branco, desenhos que a garota fizera e seus lápis de cera.

–O-Onde estou? – Jani perguntava á Susan, enquanto se sentava na cama e roçava as palmas das mãos em seus olhos. Estava sentindo-se tonta, como se seu corpo balançasse suavemente de um lado para o outro. –Cadê a tia Ann?

–Por que não se levanta e vai checar? –Susan dizia com um sorriso maldoso em sua face, estendendo sua mão gélida e magra para Jani. –Eu te ajudo a ficar de pé, vamos lá fora.

Houve certo hesitar da parte da criança, que trêmula segurou a mão de Susan e se pôs de pé com dificuldade, e assim caminhou até um corredor por onde vagou na companhia de Susan até que uma enfermeira correu em sua direção, segurando a mão oposta a que Susan segurava e assim tentou levar Jani para seu quarto novamente, enquanto Susan a puxava para o lado oposto, como se quisesse que a pequena explorasse ainda mais aquele corredor, como se quisesse evitar que sua preciosa Janice confiasse numa palavra a não ser a sua.

–Vamos... Vamos Jani, você não pode ficar de pé, você tem que descansar...

Jani queria acompanhar a mulher, queria se deitar novamente e fazer as perguntas á aquela que parecia ser a única que podia lhe responder, porém as mãos fortes de Susan a puxavam para o corredor, fazendo com que Jani chorasse desesperadamente enquanto tentava pedir o auxílio da enfermeira.

–Mas ela está me puxando! Ajude-me, por favor, ajude-me! –Dizia entre os intervalos em que parava para tomar fôlego, seus olhos pousavam por alguns segundos em Susan e por outros na enfermeira quase desesperada. –Ela não quer me soltar!

O desespero de Jani deu lugar a um enorme espanto quando a pequena ouviu as palavras doces da enfermeira, as palavras que fizeram Susan parar o que fazia imediatamente:

–Mas minha querida... Não há ninguém te puxando... Estamos apenas nós duas aqui.

Jani não viu mais Susan naquele momento... Jani na verdade não viu mais nada.

CalaliniOnde histórias criam vida. Descubra agora