E então, nunca estive na casa de minha tia, nunca houvera nenhuma Susan, Wedenesday, Four Hundred, Elize... Nem ao menos Calalini.
Não vivi tempo o suficiente para dizer que nunca estive tão confusa em minha vida, mas era verdade... Mamãe disse que eu deveria tomar meus medicamentos... Mamãe disse que se eu quisesse ir embora eu deveria me comportar... Mamãe disse que me amava; Sinto tanta falta dela...
Não sabia há quanto tempo eu estava presa em meu quarto, há quanto tempo eu não dormia, não tomava meus medicamentos e não comia. Não sabia há quanto tempo aquelas vozes me atormentavam... Aquelas vozes... Aquelas vozes... Tantas delas, tantas palavras, tanto medo. Nunca senti tanto medo.
“Não há onde eu possa me esconder das vozes que me destroem por dentro”
Susan sempre estava lá, mesmo que eu negasse sua presença, ela sempre estava lá. Sua aparência era cada vez mais diabólica, seus olhos agora eram como buracos negros e fundos, tinha olheiras quase negras, a pele branca como a de uma pessoa que nunca havia recebido raios de sol, os lábios secos e rachados, seus cabelos estavam emaranhados e seu corpo magro por baixo do vestido largo... Susan estava cada vez mais semelhante a mim, Susan havia se tornado meu reflexo.
Jessica e papai não me faziam mais visitas... Mamãe dizia que era porque Jessica estava doente, aquela vadia estúpida estava sempre doente demais para ver a própria irmã caçula. Mesmo criança eu sabia da verdade, mas apenas graças á Susan, ela disse em uma noite enquanto eu chorava encolhida em minha cama:
–Você sabe que o amor de seu pai e sua irmã por você acabou, não é? Você é louca Janice... Por isso somos amigas, porque eu e você somos duas malditas loucas.
Susan era minha melhor companhia quando mamãe não estava comigo, era ela quem me ajudava a responder aos médicos, na verdade, ela os respondia através de mim, como quando um deles perguntou o que era Calalini.
“Calalini é a fronteira entre o seu mundo –Ambas apontávamos para o doutor naquele momento, transferindo em seguida os indicadores para nossos próprios corpos, enquanto nossas vozes ecoavam juntas durante o silêncio do doutor. – E o meu mundo.”
Ela também me aconselhava a mentir para que mamãe ficasse feliz, para que pensasse que eu estava bem e que os remédios faziam mais do que dançar sobre meu corpo, sem fazer efeito nenhum. Susan dizia para que eu fingisse não vê-la e não ter vontade de voltar à Calalini, me encorajava a dizer que ambos não existiam, e quanto mais eu seguia seus conselhos, mais ela afirmava que nossa partida estava próxima.
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Margaret apertava firmemente o volante no dia em que fora buscar sua pequena Jani, queria convencer a si mesma de que estava feliz, mas algo em seu coração a perturbava de maneira desesperadora, algo como medo, ou uma insegurança que ela não sabia de onde vinha.
Para seu alívio e sorte, Jani parecia bem menos abatida e mais sorridente do que o normal, enquanto acompanhava sua mãe pelo corredor extenso que ligava seu quarto ao elevador que as levaria ao andar onde ficavam as salas para exame, porém desta vez a pequena teria de esperar do lado de fora enquanto seu médico responsável oferecia instruções á Margaret, entre elas:
“Portadores de esquizofrenia necessitam de paciência... Entretanto em qualquer sinal de regressão do tratamento, traga-a diretamente aqui.”
A ideia de ter de levar sua pequena garotinha de volta a aquele lugar abatia Margaret de tal forma que esta apenas conseguia tirar estes pensamentos da cabeça ao ouvir a voz de Jani, no carro, perguntando a sua mãe sobre seu pai e Jessica, sobre se ela ainda teria de tomar os remédios e sobre se haviam sentido sua falta. Ouvir a voz de Jani era reconfortante, principalmente naquele momento em que a levava de volta para casa, para sua vida normal, para seu quarto, seus brinquedos, sua família.
Michael e Margaret não saíram do lado de Janice durante toda aquela tarde, ao contrário de Jessica, que mal recebia a irmã e já se retirava da casa, como se às pressas, assim como Susan, ela ficou ausente durante a tarde toda... Era apenas o efeito da distração, nenhuma cura milagrosa, apenas amor e carinho de seus pais... Ou de sua mãe, exclusivamente.
Janice esperou Susan durante boa parte da madrugada, sentada sobre a cama de braços cruzados e o olhar fixo na janela, onde repentinamente Susan surgia sentada.
–Você se lembra do que combinamos Susan? Lá no quarto... –Ela sorria á garota sobre a cama, sem sair do lugar, balançando seus pés de um lado para o outro, batendo seus sapatos na parede- Você me disse que iria cumprir aquela promessa assim que pudesse...agora você pode.
–Mas já? Estou cansada, Susan... Não quero agora.
Janice sentia um medo horrendo tomar conta de si enquanto apertava o edredom cor-de-rosa com suas mãos pequenas e magras, sabia que Susan não aceitaria aquela desculpa já que a conhecia melhor do que ninguém. Para sua sorte, ou algo semelhante a sorte, Elize abriu a porta do quarto repentinamente, ofegante como se tivesse corrido por todo o bosque até o quarto de Jani.
–Se você fizer isso vai se arrepender para sempre, Jani! Vai se arrepender! – Elize caminhou até a cama, sentando-se ao lado de Janice, segurando ambas as mãos da garota – Você não precisa ouvir à Susan..,
Janice puxou suas mãos bruscamente, empurrando Elize para fora da cama, furiosa:
–Você me abandonou! –Repetia – Você me deixou lá apenas com Susan! Você merece morrer!
Janice levantou-se da cama e nem ao menos precisou andar até a janela para que Susan segurasse sua mão até a cozinha da casa, a cozinha que não frequentava há muito tempo. Ambas pararam em frente à porta de vidro por um momento para deixar que a nostalgia as invadisse... Nada feito, apenas raiva. Enquanto ainda estava parada em frente à porta, Janice sentiu os dedos de Susan intercalando-se nos seus para entregá-la um instrumento qualquer que achou na cozinha, para entregá-la a faca que Margaret usava para cozinhar, a faca que Jani sempre fora proibida de tocar, devido aquela tão familiar cautela materna que você provavelmente conhece se tem mãe, ou avó... Talvez uma tia por quem foi criado.
O sussurro arrepiante de Susan invadia a mente de Janice, esta fechava seus olhos e... Estava pronta.
...
A notícia da morte da família recém-chegada da casa do bosque não demorou a repercutir na mídia, assim como o desaparecimento de sua filha mais nova, que fora procurada por um bom tempo. Como muitos dos casos, este fora deixado em aberto, as esperanças de que Jani estivessem viva foram se esvaindo, a casa permaneceu por anos inabitada e descuidada, foi caindo aos pedaços lentamente.
Eu sinto falta de mamãe... Ela pareceu bastante assustada antes de morrer... Assim como papai e Jessica. Talvez Elize tivesse razão, talvez no fundo eu me arrependa... Mas talvez eu me arrependa apenas por mamãe, por não ter me despedido.
Saí da casa de mãos dadas com Susan naquele amanhecer, ela estava impecavelmente linda, com seu vestido azul, sapatos lustrosos e um sorriso encantador no rosto. Ela dizia que eu também estava linda, embora completamente imunda pelo líquido rubro com cheiro de ferrugem, me disse também que nunca mais veria Elize, que permaneceu chorando na porta da cozinha a me ver partir... Disse-me que agora eu viveria eternamente feliz com ela, em Calalini.