Era uma manhã fria demais para que qualquer indivíduo tivesse coragem de colocar o rosto para fora de casa ou até mesmo para que se abrissem as janelas, porém de qualquer forma eles precisariam estar lá, Margaret e Michael precisavam ouvir aquilo, apenas mais uma opinião, mais uma faísca de esperança de mais um psicólogo que nunca haviam visto na vida. A viagem para a cidade seguinte seria longa, porém á aquela altura qualquer coisa valeria a pena por sua filha, para fazê-la “melhorar”.
Nas primeiras vezes eles saíam de casa, animados e comentando um com o outro sobre todas as possibilidades de melhora que sua tão amada menina teria, mas de alguns meses para cá, a animação foi se esvaindo, como se tivesse saltado pela janela várias vezes, até que restassem apenas os pequenos “cacos” que os pais cansados e deprimidos tentavam recolher com as mãos nuas desesperadamente.
Naquela manhã na qual Jessica sabia que seus familiares usariam para viajar, a garota usou especialmente para decair ainda mais, não que aquilo fosse proposital, mas sentia que precisava daquilo, a voz que ecoava em sua mente dizia que ela precisava ferir-se daquela forma, sentir as lâminas escorregando por seus braços verticalmente dos pulsos ao limite de seu antebraço, várias e várias vezes. Ela não chorava enquanto fazia aquilo, apenas pressionava o lábio superior contra o inferior, sentindo a pele se rasgar, quente, aquele líquido rubro lhe escorrer, ferindo-a ainda mais que as lâminas. Por fim, como se fosse um pequeno ritual, Jessica limpava seus braços, enfaixava-os habilmente e limpava a bagunça que fizera em seu quarto, como uma assassina habilidosa que não deixava rastros.
Enquanto seus pais viajavam e sua irmã estava ocupada demais se mutilando em mais um de seus surtos (como Jani chamava e desaprovava) a garotinha aproveitava-se de sua chance para sair correndo em disparada pela porta da cozinha quase como se fosse atravessá-la mesmo fechada, indo direto ao seu novo e secreto paraíso: Calalini.
Não era a primeira vez que a garota visitava o local, tanto que o caminho já lhe era conhecido e todos os que lá freqüentavam já sabiam seu nome. Nesse dia em especial todos os amigos de Susan, inclusive esta mesma estavam lá, com exceção de Elize, que chegava apenas após Janice ter cumprimentado todos com um sorriso doce na face e um breve aceno de mão. A garota dos cabelos ruivos levava devagar e docemente as mãos por sobre os olhos de Jani, sua voz era baixa e mansa, quase como a de Susan.
–Adivinhe quem é – Ria baixo – Mas não demore muito, seu rosto está gelado e eu estou com frio.
–Elize! – Jani dizia animada antes de se virar e abraçar a ruiva, que via numa expressão triste, o olhar de Susan, que revirava os olhos enciumados.
As horas se passaram e aos poucos, um por um dos novos amigos da menina mais novaforam embora, restando ali apenas Susan e Elize, que alimentavam com Jani os últimos animais que ainda estavam ali, inclusive Four Hundred e Wednesday, que pareciam dar-se muito bem para cão e gato. Após certo tempo de silêncio, Susan puxava Jani para perto de uma das numerosas árvores do bosque.
–Você acha que eu sou burra? Acha que eu sou cega? Estou vendo que você está gostando mais dela do que de mim! Vai me deixar de lado, Jani? É isso o que planeja? –Os olhos enfurecidos pareciam engolir a face da garota.
–E-Está falando de Elize? –Era óbvio, mas o medo nos faz indagar coisas tão idiotas – Ela é nossa amiga, Susan! Amiga de nós duas, gosto de vocês igual...
–TEM QUE GOSTAR MAIS DE MIM! ELIZE É UMA IDIOTA!
Elize agora tinha lágrimas nos olhos, ao ver a pequena Jani ser empurrada para contra a mesma árvore da qual ela e Susan estavam próximas. Era uma garota delicada, frágil, não gostava de ver o sofrimento alheio, principalmente o de sua pequena Jani.
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O psicólogo não dissera nada que diferisse sua opinião da de outros médicos, á não ser por um palpite um tanto inusitado, após receitar os mesmos medicamentos, os mesmos tratamentos e as mesmas atitudes para se ter com uma pessoa deficiente em casa, o novo doutor sugeriu uma clínica próxima, sem muitos pacientes, onde os médicos que lá trabalham poderiam dar uma atenção excepcional á filha do casal. Eles precisariam rever os conceitos da ideia, é claro, de qualquer forma recebê-la daquela maneira foi quase como um baque, uma notícia dolorosa aos pais que se dedicavam tanto á filha.
Em casa, Jessica estava sentada em sua cama, encolhida e olhando para o vértice de duas das paredes lilases de seu quarto, pensando longe, na verdade tentando livrar-se daqueles pensamentos horrendos que invadiam sua mente.
–“Por quê?”-Indagava-se, abraçando os próprios joelhos. Estava tão perdida em si que nem ao menos vira chegar o anoitecer, nem ao menos vira Jani correr até seu próprio quarto, chorando baixo com Four Hundred no colo, o gato era o único que a fazia acalmar-se, com aquele ronronar doce e aquele miado baixo que apenas surgiam quando o gato negro era devidamente acariciado.
Minutos após a entrada da filha mais nova, Michael e Margaret chegavam à casa gelada, suspirando seu desapontamento ao verem os pratos deixados para o almoço intactos, no mesmo lugar, o que indicava que nenhuma das duas meninas havia se preocupado em alimentar-se.
Para pouparem as filhas dos minutos extras que teriam para que algo desse errado, cada um dirigiu-se a um quarto diferente rapidamente, Michael para o quarto de Jéssica, que permanecia na cama, sem dizer nem ao menos uma palavra ao pai, que a questionava sobre o almoço intocado ou sobre o dia que a filha havia passado inteiro em seu quarto, o que ele mandara que ela não fizesse; Margaret para o quarto de Janice, que chorava e soluçava baixo nos braços da mãe aflita, olhando as marcas roxas que havia nas costas da filha conforme esta tentava explicar o que as havia causado.
–Foi Susan –Jani tomava fôlego – Ela jogou pedras em mim e em Elize, estava enciumada, disse que nós duas éramos idiotas...
Margaret distanciava um pouco a face da garota de seu colo, analisando brevemente o peitoral molhado pelas lágrimas da filha, para após isso levar sua destra á face da pequena, limpando gentilmente aquela água amarga que preenchia seu rosto, olhando naqueles olhos tão belos daquela forma maternal e doce que acalma o coração de qualquer criança, preenchendo aquele momento de conforto com a simples frase que fazia tudo mudar:
–Estou aqui...vai ficar tudo bem.